AS IMAGENS DISTORCIDAS DO DEUS DE JESUS E O ACOMPANHAMENTO ESPIRITUAL

* por Regina Console Simões

RESUMO

Durante a jornada de encontro pessoal com Deus é grande a possibilidade de o acompanhado trazer imagens distorcidas de Deus, as quais foram construídas ao longo de sua vida. É fato que ao longo da história sempre existiram imagens distorcidas de Deus. Estas imagens acabam influenciando diretamente nas relações sociais, sempre em nome de Deus. Guerras, divisões e conflitos religiosos, entre outros fatos, ocorreram e ocorrem devido a estas distorções. Identificar e evidenciar algumas das potenciais imagens distorcidas é fundamental para mostrar um dos aspectos que podem dificultar uma jornada espiritual mais íntima com Deus. Para uma boa e saudável caminhada ao encontro do Deus de Jesus é essencial que o Deus Amor seja reconhecido e venha habitar plenamente a mente e o coração dos que fazem esta jornada espiritual. Buscar o acompanhamento espiritual, por sua vez, é a forma indicada para se fazer este trajeto. O acompanhante espiritual, em seu trabalho de guiar o acompanhado ao encontro de Deus, estimula o discernimento das possíveis imagens distorcidas de Deus. Em sequência, é necessário que estas imagens distorcidas sejam purificadas e as resistências pacificadas, de forma a permitir que o caminho do encontro com o verdadeiro Deus de Jesus Cristo seja restabelecido. Identificar as imagens distorcidas de Deus, purificá-las com o entendimento do verdadeiro Deus de Jesus valendo-se do acompanhamento espiritual como forma de desenvolvimento ao encontro íntimo com Deus é um caminho saudável. Para desenvolver este itinerário, usar-se-á o livro Matar nossos deuses – em que Deus acreditar de José Maria Mardones.

Palavras-chave: Deus, imagens, acompanhado, acompanhante, encontro.

Sumário

Introdução
Capítulo 1: Algumas imagens distorcidas de Deus segundo José Maria Mardones
1 O Deus do medo
2 O Deus do sacrifício
3 O Deus da imposição

Capítulo 2: O Deus de Jesus Cristo
1 Deus é Amor
2 O Deus da vida
3 O Deus da liberdade

Capítulo 3: Purificar a imagem de Deus no Acompanhamento Espiritual
1 O acompanhamento espiritual e o Deus do acompanhado
2 O encontro com o verdadeiro Deus de Jesus Cristo
3 Viver a relação com Deus no dia a dia

Conclusão

Bibliografia 

Introdução

“Ninguém jamais viu a Deus”, assim diz São João em seu evangelho (Jo 1,18). Isto é um fato e, devido à ausência de uma identificação física e real de Deus, o ser humano através dos tempos constrói imagens e representações que dão suporte à experiência humana com Deus. A base de construção das imagens de Deus são a leitura das Escrituras, o ensinamento oral ou formal, as práticas religiosas e a moral cristã, entre outras que provocam a Sua presença viva em nós[1]. Apresentaremos este processo em três capítulos.

O Capítulo 1 mostra que os ensinamentos ao longo do tempo sofrem distorção e acabam por criar imagens desconectadas do Deus de Jesus. A limitação da condição e da linguagem humana aliada a um exagerado moralismo e legalismo na transmissão dos ensinamentos religiosos, acabam por aprisionar e radicalizar a imagem de Deus e o entendimento de Sua vontade. Com isto, aos poucos, nascem imagens opressoras como o Deus do temor, do sacrifício e da imposição, entre outras[2]. Estas imagens distorcidas acabam por influenciar diretamente as relações sociais potencializando guerras, divisões e conflitos religiosos, sempre em nome de Deus.

O Capítulo 2 mostra que o Deus de Jesus é o Deus Amor para todos, sem distinção. Que é mais que necessário purificar as imagens de Deus, pois o Deus do temor surge da não compreensão do significado e extensão do Deus de Amor. Que o Deus que impõe sacrifício abafa e encobre o Deus da vida. E, que o Deus que impõe anula o Deus da liberdade, do livre arbítrio. É condição de vida plena restaurar no homem a verdadeira imagem do Deus de Jesus.

O Capítulo 3 pontua que aquele que busca um encontro pessoal com Deus, o faz com seu repertório histórico pessoal formado através dos anos, carregado das marcas produzidas pela vida. Que não é tarefa fácil alterar as imagens distorcidas de Deus uma vez que estas estão fortemente arraigadas na mente e nos sentimentos das pessoas. Estas de certa forma refletem o jeito que veem e entendem a realidade e a vida. O acompanhamento espiritual busca que aquele que deseja conhecer a Deus e caminhar intimamente com Ele, adquira capacidade de discernir as possíveis imagens distorcidas de Deus dentro de si e pacifique as resistências de forma a propiciar o encontro com o verdadeiro Deus de nosso Senhor Jesus Cristo. O processo de mudança de percepção e eliminação das resistências é ao mesmo tempo doloroso e libertador. Implica também numa conversão mental, afetiva e até de vida. É tarefa de todo cristão permitir que Deus seja Deus. [3] O acompanhante, no seu papel de auxiliar o acompanhando a ler a ação de Deus em sua vida através da oração, deverá prover subsídios para purificação das imagens distorcidas.

O objetivo principal a ser atingido é entender que por trás das imagens de Deus está em jogo a aceitação ou não de Deus pelas pessoas. Ou melhor, compreender que de fato o que não se aceita não é propriamente Deus em si, mas as representações e imagens que se faz d’Ele. Para tal é necessário empreender uma jornada de descoberta das imagens distorcidas e tratá-las com a verdadeira imagem do Deus de Jesus Cristo. Este caminho pede do caminhante abertura, disposição e vontade. É impossível neste momento tratar de todas as possíveis imagens distorcidas, mas existem três delas que são as mais frequentes e impactam significativamente o progresso espiritual de quem as carrega consigo. Este é o primeiro passo, conhecer estas três possíveis imagens incorretas de Deus para então desconstruí-las.

Capítulo 1
Algumas imagens distorcidas de Deus
segundo José Maria Mardones


Diversas são as imagens[4] incorretas de Deus que percorrem o imaginário humano. Não é possível elencar a todas nesta monografia, no entanto, destacam-se três tipos de distorções muito comuns que impactam e fragilizam seriamente a relação com Deus: o Deus do medo, o Deus do sacrifício e o Deus que se impõe. Estas são concepções negativas que tornam o caminho da fé pobre no desenvolvimento de uma relação que se expanda e unifique a criatura com o Criador. Neste relacionamento disforme, o cristão pouco espelhará em seu semblante e em sua atitude a beleza do amor de Cristo.[5] Falar livre e abertamente sobre estas imagens, nomeá-las e defini-las, é um processo purificador e necessário. O encontro com o verdadeiro Deus de Jesus é a base para uma jornada espiritual renovadora.

1 O Deus do medo

Há quem diga que o medo deveria ser o oitavo pecado capital tal o dano que causa no ser humano.[6] Muitas são as vezes que as expressões “não temas”, “não temais” ou “não tenhas medo” aparecem na Bíblia, a fim de transmitir confiança e segurança como contraponto ao temor e ao medo. José Maria Mardones, professor, acadêmico e sacerdote espanhol, pontua que a imagem do medo é a mais utilizada e que esta é um inimigo escondido no mais profundo do ser humano pronto a despertar quando estimulado. Segundo nosso autor, a vulnerabilidade e a incerteza são dois componentes que tornam um terreno fértil para que o medo se propague. Por outro lado, o poder é a outra face do medo. Onde existe o medo há também um fator de poder exercendo coerção. Assumindo que Deus é o Deus do medo, fica difícil tornar-se um ser livre e amante do próximo.[7]

A vulnerabilidade e a incerteza estão presentes na constituição humana, que na medida certa cumprem seu papel. Porém, dependendo do desequilíbrio na intensidade de uma ou outra, ou de ambas, acabam por gerar o medo. Instintivamente, faz parte do aprendizado ir ao encontro de defesa e segurança, justamente para se livrar do medo. Este horizonte, uma vez alcançado, gera a sensação de poder, pois é com ele que se vence a vulnerabilidade e a incerteza. O homem, ao longo dos séculos, buscou identificar, das mais diversas formas, a fonte de suas angústias e medos. As religiões, como resposta, apresentaram um Deus poderoso, mas ao mesmo tempo manipulador. Por muito tempo utilizou-se o medo como elemento de submissão, o temor de Deus como motivo de prevenção ao pecado e busca de conversão. Mardones aponta o mal causado pela pregação da salvação com ênfase na condenação, onde o doutrinamento por medo tornou-se sistemático.[8] É o Deus vigilante, que tudo vê e tudo sabe a exemplo de um “big brother” moderno, relacionado com um significado de verificar se nada de errado está sendo feito, submetendo a consciência humana ao medo e à culpa[9].

Este Deus vigilante fez parte da educação infantil em muitos lares, momento em que as crianças são mais vulneráveis e impressionáveis. William Barry, sacerdote jesuíta e proeminente diretor espiritual americano, explica que nesta idade se tem apenas a capacidade infantil para entender que se eu for bom e obediente Deus sorrirá para mim. No entanto, se eu for mau e briguento, Deus se zangará comigo.[10] Nem sempre se saberá claramente o que efetivamente contribuiu para que o medo de Deus nascesse na pessoa. Mas, é na infância que pais e educadores estabelecem os limites de convivência e trazem os primeiros pontos da educação religiosa. Não é difícil que muitos tenham usado expressões como “se você não comer Deus vai te castigar” ou “Deus não gosta mais de você, pois você é malcriado”, entre tantas outras repreensões. São estas imagens fixadas na infância que contribuirão, futuramente, na dificuldade de estabelecer uma relação de confiança com Deus.

Neste contexto, Deus é o protagonista de uma catequese de morte, inferno e pecado que invade o imaginário humano causando medo, submissão e fechamento. Esta catequese é reforçada pela apresentação de um Deus que irá pedir contas a todos, respondendo por todo mal feito e do qual ninguém escapará.[11] Como consequência, este poder que causa medo também causa atrofia, inércia, elimina a vontade própria e causa danos à pessoa humana. Mais ainda, o Deus do medo chama a outro Deus, o Deus do Sacrifício. O Deus do sacrifício se une punitivamente ao Deus medo como forma de expiação pelos “pecados”. É perversa a mente criativa do ser humano frente à suas fragilidades. Há que se buscar cada vez mais um fortalecimento da correta evangelização para que emerja o Deus revelado por Jesus: que é amor (cf. 1Jo 4,9).

2 O Deus do sacrifício

Outra imagem que está enraizada dentro do ser humano é a do Deus dos sacrifícios e das expiações, que acabam por encobrir o verdadeiro Deus de Jesus, que é o Deus da misericórdia e da aceitação incondicional, o Senhor da vida. A imagem do sacrifício está intimamente ligada à redenção e ao perdão dos pecados como condição para se alcançar a atenção e a clemência de Deus.[12] Uma definição para os sacrifícios de expiação é pressupor que houve uma ruptura das boas relações entre a divindade e o adorador, e o sacrifício é a propiciação para pacificar a divindade e restaurar o seu favor. [13]

Para falar sobre o Deus do sacrifício é necessário trazer a imagem de Jesus que veio nos salvar e nos redimir dos pecados, fato que imediatamente remete o imaginário para as provações de Jesus na paixão. Mais do que a paixão, o imaginário fixa-se especificamente na morte, morte de cruz que acaba por desviar a atenção da vida de Jesus e do que Ele pregou. Com isto, esta ênfase na morte e na cruz acaba por divinizar o sofrimento enaltecendo-o como se este fosse o caminho exclusivo que leva para Deus. Existem expressões comuns na igreja que ajudam a sedimentar este pensamento, tais como “viemos a este mundo para sofrer”, “um cristianismo sem sofrimento não é cristianismo”, entre outras.[14] Com isto, comumente vemos na igreja cristãos com expressões sérias no rosto, tristes senão rígidas.

Neste mesmo enfoque surgem as promessas como forma de pagamento, caso a graça pedida seja alcançada. Em geral, no desespero, o ser humano apela a Deus como recurso para obter algo que deseja muito. Com isto busca estabelecer uma relação de barganha: se você me conceder isto eu te dou aquilo, que normalmente será algo que implica muito esforço, sofrimento ou dificuldade para realizar. Este tipo de entendimento acaba por reforçar a necessidade do sofrimento para se relacionar com Deus.

Estas perspectivas de sacrifício e renúncia apareceram ao longo dos séculos nas pregações e ensinamentos sobre o Reino de Deus. Uma caminhada alegre e que não apresente certo teor de martírio ou dores pode ser colada em dúvida. Algumas vezes, a demonstração de sofrimento e sacrifício é feita com expressão de orgulho, como se desta forma seu portador tivesse adquirido uma atenção diferenciada de Deus. Nesta visão, o caminho para o encontro com Jesus torna-se árduo e sequer aberto para todos devido às penosas exigências. Mardones coloca com muita propriedade que:
a deformação da religião pregada por Jesus é enorme: uma vez que o sofrimento, o sacrifício e a renúncia aparecem como uma consequência da opção pelo Reino de Deus, isto é, do esforço por realizar o desejo de Deus para com os homens, idealiza-se e sacraliza-se o sacrifício pelo sacrifício. Agora é o sofrimento, a dor, o jejum, a penitência, a renúncia o que nos santifica e nos faz agradáveis a Deus. [15]

A violência em excesso que existe no mundo de hoje, o mal atuando de forma clara e absurda, faz com que cada vez mais surjam questionamentos sobre o sofrimento e a participação de Deus nos acontecimentos. Argumentos como “Deus está castigando”, “é justiça divina” ou “como Deus permite isto” refletem o inconsciente de uma relação punitiva provocada pela ausência de sacrifício a Deus. Neste processo, a religiosidade parou na morte de cruz, a fé não tem espaço para Jesus ressuscitado e os ensinamentos do reino foram esquecidos. A experiência pascal libertadora e essencial para transformar o crente em protagonista de sua vida, numa relação renovada com Deus, não tem espaço para ser vivenciada. A fé que não contempla de forma real Jesus ressuscitado e que não coloca o homem cônscio e responsável por suas decisões e ações, está morta na escravidão dos sacrifícios de merecimento e penitências. Este homem nada mais deseja do que ser guiado e permanecer dependente de alguém que mande em sua vida. O Deus da vida não tem espaço neste ambiente onde existe somente uma relação passiva e individual no viver da fé. Este é o momento em que aparece a imagem do Deus da imposição.

3 O Deus da imposição

O Deus da imposição é o Deus da proibição, o Deus exigente que governa por decretos. Trata-se de um Deus manipulador que faz valer sua vontade, que repreende reprimindo com certo cunho moralista exacerbado. Enfim, um estraga prazeres da vida humana.[16] Nesta perspectiva, as leis e os mandamentos de Deus são tomados porsignificados diferentes, transformando-se em cerceadores da liberdade e exigentes de uma submissão. Esta imagem de Deus não deixa de ser complementar às duas imagens anteriores, ou seja, a do medo e a do sacrifício. Elas compõem uma trilogia que cerceiam a liberdade e a vontade, transformando o ser humano num mero fantoche disponível às manipulações de Deus.

Ao Deus impositivo corresponde um ser humano submisso e obediente. Esta normalmente é a postura desejada por algumas autoridades deste mundo, tanto civis como religiosas. Segundo nosso autor, “sob a apelação da ‘vontade de Deus’, ao ‘Deus que quer’, aconteceram tantos abusos, tanto autoritarismo, tanta ‘vontade’ de autoridade de plantão, que se torna inevitável a suspeita da utilização e da manipulação”. [17] Ao longo da história do cristianismo não são poucos os fatos que corroboram esta visão, que inclusive deram base para movimentos de guerra, de usurpação de bens e eliminação de vidas.

Um aspecto onde aparece mais forte esta imagem do Deus repressivo é na sexualidade. A sexualidade é um campo delicado e cheio de contrastes, sendo que em muitos casos é “vista como uma força perigosa que devia ser dominada e reprimida”.[18] A educação sexual, numa perspectiva religiosa, se viu envolta entre a obscuridade, a culpabilidade, ao pecado e quando não a imoralidade. Isto proporcionou em muitos adolescentes sentimentos de culpa, angústia e dolorosos experimentos que geraram, entre tantas coisas, a sensação de imundice e de pecado. A imoralidade a que foi sujeitada a sexualidade natural do ser humano, pelo próprio homem e em nome das normas de Deus, acabou por provocar distanciamento e rejeição ao catolicismo: “estamos vendo a cada dia, principalmente no mundo juvenil, uma rejeição da instituição eclesial e até de Deus”[19].

Complementar à repressão sexual segue o Deus moralista. É esta imagem que acaba por envolver o tratamento dado à sexualidade, reforçando o Deus que controla e repreende. É o Deus que “me exige”, “me pede”, “diz que devo”, “eu tenho que”, formando um círculo moral vicioso entre “dever e ter que”. Estamos frente a uma moral puritana e constrangedora. Este Deus acaba por se fazer distante, inatingível, como um monarca absoluto do universo.[20]

A vida entre repressão e moralidade acaba por gerar angústia, medo e choque em confronto com o próprio desenvolver natural do corpo. Não há como conviver com um Deus que não nos acolhe e protege, mas sim nos vigia, controla e pune segundo desejos e vontades que, sequer por vezes, temos domínio sobre eles. Este Deus não combina com o Deus da liberdade, da criatividade, da expansão para o mais, conforme nos revelou Jesus Cristo. A ausência de suporte e ensinamento sólido, vivificador que abra caminho do encontro natural com o corpo, propicia fortemente o nascimento de comportamentos submissos, culposos, inertes ou revoltosos, beligerantes ou contrários a Deus. Segundo Mardones, “uma horrível distorção da imagem de Deus forjada na história do Cristianismo, não sem nossa colaboração”.[21]

Permanecer nas imagens deturpadas de Deus é permanecer na morte em vida. É necessário abrir espaço e ir para a descoberta do verdadeiro Deus que Jesus mostrou. É necessário ter a ousadia de olhar para Jesus, abrir o próprio coração e iniciar uma caminhada de observação e discernimento entre a imagem deturpada e o que Jesus efetivamente disse. O primeiro passo é entender que Deus nos busca, nos ama incondicionalmente muito mais do que o homem à Ele. Esta aventura, à qual o homem é convidado, é uma aventura de fé que consiste em aprender a se deixar amar pelo profundo amor de Deus[22].

Capítulo 2
O Deus de Jesus Cristo

É certo que, quando a mente está repleta de imagens e informações distorcidas de Deus, será difícil percebê-Lo ou distingui-Lo sob outra perspectiva. Ou melhor, será difícil entender ou crer que Deus vai agir de forma contrária ao esperado. Consequentemente, criticá-Lo ou rejeitá-Lo será uma reação mais normal. Faz-se necessário empreender um caminho delicado de busca e de experiência de Deus, pois, desta forma, abre-se a possibilidade de construir um novo significado d'Ele, em nós.

O ponto de partida para conhecer verdadeiramente a Deus não começa por Deus em si mesmo, diz Castilho no capítulo sobre “A complicada tarefa de conhecer a Deus”.[23] Não se pode pegar Deus e mostrar sua essência, seus atributos ou seus poderes. Deus está muito mais além de onde nossa limitada capacidade possa alcançar ou compreender. Se alguém disser que entende ou compreende a Deus, em fato o que está dizendo é que entende e compreende o Deus criado e imaginado por si próprio [24].

Deus se deu a conhecer através de seu Filho, Jesus Cristo. O apóstolo João assim registra as palavras que Jesus usou ao falar sobre si: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo14,6). Não se pode falar de Deus sem se falar de Jesus, assim como não há como se falar de Jesus sem se falar de Deus: “o rosto concreto e pessoal de Deus no mundo revelou-se em um homem. No homem Jesus de Nazaré”.[25] Desta forma, para encontrar a Deus, vamos pelas pegadas de Jesus e o local de busca é na Bíblia, dentro dos Evangelhos, nos Salmos, em Isaías e entre os demais livros que a compõe.

A cada imagem disforme de Deus que o homem construiu dentro de si, por conta de fatos negativos em sua vida, há um antídoto: o verdadeiro Deus de Jesus. Ao Deus do medo, do temor vem o Deus do amor. Ao Deus do sacrifício socorre o Deus da vida, da misericórdia e da aceitação incondicional. Ao Deus da imposição, da proibição está o Deus da liberdade. É o conhecimento pessoal do Deus de Jesus que fará com que as imagens distorcidas que carregamos em nós sejam gradativamente substituídas pela imagem do verdadeiro Deus.

1 Deus é Amor

Como visto no capítulo anterior, o medo provocado por um Deus que vigia e controla tira o sabor da vida. O medo paralisa, aumentando a vulnerabilidade e insegurança do ser humano frente aos fatos da vida. Ele é um obstáculo para o amor de Deus, pois leva a ídolos que aparentemente deixam as pessoas seguras. O Deus do medo não é o Deus de Jesus. O Deus de Jesus é o Deus do amor incondicional belamente expresso na parábola do pai misericordioso (Lc 15,11-32). Mais do que nunca este Pai amor necessita ser recolocado no coração dos homens.

O centro do cristianismo está num Deus que é o próprio amor (1Jo 4,16). “Um amor que não tem reservas nem exclusões. É um amor universal que se estende sem limites nem fronteiras, sem exclusões e condições. É gratuito. É perdurável e inevitável.”[26] Não há como expressar Deus de outra forma, pois o amor é o próprio Deus. Este princípio é incondicional e indivisível, sendo que o amor está em tudo o que Deus faz. Negar ou duvidar deste princípio é desfigurar a Deus, diz o nosso autor.

É difícil para o ser humano entender ou acreditar neste amor incondicional de Deus. Ainda que ouse ir ao mais extremo dos pensamentos sobre Deus, ainda assim não alcançará sua total compreensão. Na Bíblia, o caminho humano de encontro com Deus mostra um Deus que se comunica com o homem, mas que é percebido e filtrado segundo a percepção humana, segundo seu tempo e cultura. A Bíblia, iniciando pelo Antigo Testamento, gradativamente caminha do Deus dos exércitos ou do Deus terror de Isaac, para um Deus que cria laços de amor em tom maternal, como nos relata o profeta Oseias (cf. Os 11). Deus também declara seu amor incondicional em Isaías (cf. Is 49). Nos Salmos, Deus é a fortaleza, a rocha, a fonte de onde brota nosso ser (Sl 86), é o pastor que nos conduz (Sl 22), aquele que nos protege e tira o temor (Sl 26), aquele que nos purifica (Sl 50), que nos sustenta (Sl 62) e que é fiel de geração em geração (Sl 88).[27]

No Novo Testamento, Jesus vem ao mundo trazendo a verdadeira imagem de seu Pai. Ele dá testemunho daquele que tanto amou o homem que oferece a nova aliança através de Jesus. A primeira carta de João diz que Deus é luz (1Jo 1,5) e que o amor vem de Deus (1Jo 4,7). Como já apontado acima, Deus rompe todas as suas medidas para expressar seu amor incondicional na parábola do pai misericordioso (cf. Lc 15,11-32). Cinco verbos marcam os passos deste pai que demonstra seu amor misericordioso: avistou, comoveu-se, correu, abraçou e cobriu de beijos.[28] O amor verdadeiro escuta e não se perde perante as explicações ou desculpas. Ele age desmedidamente para mostrar o amor sem limites: ele veste com a melhor vestimenta, ele coloca um anel no dedo, ele dá sandálias, ele manda matar o melhor novilho e organiza uma festa.[29] É um amor escandaloso.

No entanto, será no seu próprio testemunho que Jesus mostrará a real imagem de Deus. Jesus é o Filho enviado por Deus por amor e para a salvação dos homens. Aos poucos, olhando de perto o que Jesus faz, por onde anda, a quem se junta, como reage é que se vai compreendendo o que é o amor. O autor adverte para não se fazer uma leitura literal e empobrecedora da vida de Jesus. Como exemplo ele cita as Bodas de Caná (Jo 2,1-10) afirmando que “Jesus nesta passagem não quer retratar seu poder divino, mas sim uma festa de bodas [...] fala da relação amorosa de Deus com o homem [...] é uma história de amor nupcial”.[30] Ao falar dos apóstolos cita Paulo com seu belíssimo hino ao amor em 1Cor 13,1s, onde aponta que ainda que se tenha tudo, se não houver amor de nada adianta.

A compreensão que Deus nos amou primeiro e continua a amar, ainda que difícil de internalizar logo de início, vai produzindo seu efeito de combate ao medo. Deus nos mostra que o amor cuida, o amor acalma, o amor ama e acolhe o próximo com compaixão e misericórdia. Devolve a vida com liberdade e perspectiva de mais. É um sopro de ar novo e vivificador que impele a pessoa à plenitude. Em função da força que o amor provoca é que Jesus reforça o principal mandamento: amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei (Jo15,12).

Do momento que a imagem do Deus do medo e do terror diminui, novas perspectivas se abrem para aquele que O busca. Um novo movimento tem início e provoca a abertura para a vida. Este novo olhar para Deus traz desejo de vida e vida em abundância.

2 O Deus da vida

Assim diz Oséias: “porque é amor que eu quero e não sacrifício” (Os 6,6). É certo que uma relação estabelecida em sacrifício que expia pecados e na mortificação por sentimentos de culpabilidade acabam por tornar mínimas as chances do encontro com o Deus que expande e dinamiza o ser humano. É preciso eliminar esta imagem do Deus da violência e da morte para deixar penetrar o Deus da vida, da paz, da alegria, da liberdade e da novidade. Buscar o Deus misericordioso permite que se abra a possibilidade da vivência do poder curativo, renovador, vivificante do amor divino. Deus espera a resposta sincera do homem ao seu intermitente chamado, para estabelecer uma relação amorosa que derruba a imagem do Deus do sacrifício dando lugar ao Deus da misericórdia.

Mais do que nunca é necessário no mundo de hoje trazer misericórdia, vida e amor em todas e quaisquer relações seja pessoal, profissional, afetiva ou familiar. Para tal, é o Jesus ressuscitado quem deve ser o horizonte para o qual se move o homem e não o Deus morto e eternizado na cruz. O sacrifício, a dor devem gradativamente ceder lugar à luz. Este caminho é feito olhando a vida de Jesus, observando seus atos e ouvindo suas pregações. Mardones ressalta a importância de não tomar a vida de Jesus, sua morte de cruz e a ressurreição como partes estanques. Elas formam parte de um todo único e indivisível. Se a cruz for isolada da vida que precedeu e da ressurreição que se seguiu, ela acaba por se tornar como que o único ato de salvação feito por Jesus.[31] A vida de Jesus fica desvalorizada se a cruz fica subjugada a uma morte sangrenta e dolorosa que parece ser a única finalidade e propósito de Sua vida.[32] Quem assim o entende acaba por sacralizar o sofrimento, o sacrifício e a renúncia com todas as consequências negativas.

É vital que a vida de Jesus seja vista no seu todo. Uma vida de relação íntima e em total obediência à vontade do Pai que tem como centro a “boa nova” de que o reino de Deus está perto e que a salvação entrou no mundo.[33] Suas pregações, parábolas e ações contemplam a tudo e a todos: saldar dívida ou comprar como metáfora comercial, mundo da saúde com curas médicas e milagrosas, ambiente político com temas de liberdade e pertença como cidadão, imputação de legítimos e ilegítimos referindo-se ao âmbito legal, temas militares com amigos e inimigos entre tantos outros[34].

Jesus superou a morte e trouxe a vida em plenitude iluminada pelo Espírito Santo. A continuidade da perpetuação do amor e da vida fica a cargo dos apóstolos em memória pela experiência vivida com Jesus. E é esta mensagem que deve ser passada aos cristãos, diferentemente do Deus do sacrifício e do sofrimento.

Jesus traz consigo a prática do verdadeiro amor que gera vida, misericordioso e paciente de forma gratuita com todos, transmitindo assim em Seus atos a verdadeira imagem do Deus invisível. É a vida solidária para com o próximo que gera vida e traz para perto o reino de Deus. Como fruto, aquele que goza da vida gerada por Deus a goza em plena liberdade. Quem ama e é amado sente o sabor de vida plena, deseja e vive na liberdade em Deus, pois o amor gera vida em liberdade.

3 O Deus da liberdade

Jesus, durante sua vida, revela que a Verdade liberta. E é isto que ocorre após o ressurgimento da verdadeira imagem do Deus que é amor e que é vida. A sinergia entre amor e vida faz brotar a perspectiva de restabelecimento da verdadeira imagem do Deus da liberdade. Em continuidade, aos poucos, o Deus da liberdade, do amor e da vida se juntam no combate à eliminação definitiva das imagens distorcidas do Deus da imposição, do medo e do sacrifício. Quem ama e sabe-se amado, quem experimenta a emoção de vida nova e aberta ao mundo, não tem como negar que deseja ardentemente viver a liberdade. É importante ter claro que amor, vida e liberdade andam juntos em oposição ao medo, sacrifícios e proibições.

Ao longo de sua vida terrena Jesus buscou mostrar que o estrito cumprimento da Lei não torna o homem bom, mas escravo de atos que perdem o significado essencial. A parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14) retrata este tema. Dois homens orando. O fariseu orando a vista de todos e o publicano afastado, sem levantar os olhos, pedindo piedade por ser pecador. O fariseu observando a minúcia da lei perde a virtude essencial. Em Mateus 23 encontramos o reforço a este significado: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do entro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23, 23ss).

O medo, o seguimento estrito da lei sem buscar compreender o que ela efetivamente pretende, empobrece e deixa apodrecer a liberdade e a vida. Viver debaixo de proibições, imposições, com medo e reprimido faz com que o homem não se arrisque e, consequentemente, nada faça pelo reino de Deus. O autor pontua que o homem é chamado para a festa de Deus, onde é convidado a exercitar a liberdade e colocar em ação toda sua capacidade humana em prol do reino. É na liberdade que conquistamos nova vida.[35]

A gratuidade é a fonte da liberdade. O amor de Deus é gratuito. Ele nos amou primeiro (cf. 1 Jo 4,19) e nos salva gratuitamente. Não existe barganha ou pagas para ter o Seu amor. Obrigação e graça são como água e vinho, não se misturam e estão em oposição. E este Deus da graça e da gratuidade é o Deus que gera a liberdade. No amor divino, a liberdade está a salvo e atrai com mais força que todas as leis morais juntas. Essa é a lei do Espírito, de Deus em nós, de sua força e guia em nós [36].

Deus não impõe nada e nada deseja que não brote da liberdade. Também não oferta uma liberdade condicional como o preso que é livre ao final de semana, mas deve voltar e dar conta de seus atos. Esta é uma falsa liberdade. Uma liberdade pela metade não é a liberdade de Deus.[37] Ele não coloca condições. Deseja que a liberdade seja realmente plena e irrestrita. Por outro lado é importante entender que a verdadeira liberdade carrega consigo a responsabilidade. O homem realmente livre não é irresponsável e nem se portaria de outra maneira. Ser livre requer coragem e coerência a partir de si. Coerência nos atos e confiante no amor de Deus a ponto de livremente não querer perder este amor.

O homem livre ama e vive plenamente. Quem se abre à gratuidade do amor de Deus perde o medo. Quem é livre obedece às leis da vida e não da morte. Quem vive livremente ama e oferta amor ao próximo. Quem ama não provoca medo ou opressão, mas gera confiança e perspectiva de vida. A dinâmica das imagens distorcidas de Deus que se interligam gerando morte deve ser combatida com a compreensão do Deus de Jesus. O Deus de Jesus é fonte de amor e vida em plenitude.

O homem macula Deus com suas afeições desordenadas. Sem se dar conta, passa adiante concepções distorcidas como se fossem verdades. Limpar este terreno para germinar vida é um trabalho daqueles que tiveram a experiência do amor de Deus e se dedicam ao acompanhamento espiritual, entre outros. É necessário e vital para a vida em comunidade e em sociedade que a imagem do Deus de Jesus seja restabelecida. O acompanhante deve ajudar o seu acompanhado ir ao encontro de Deus, bem como conhecer as nuances da vida espiritual e as possíveis imagens distorcidas que acabam por retardar o encontro com o verdadeiro Deus de Jesus. O próximo capítulo mostra a diaconia do acompanhamento espiritual no que concerne às imagens de Deus no relacionamento interpessoal do acompanhado com o Senhor.

Capítulo 3
Purificar a imagem de Deus no Acompanhamento Espiritual

Primeiramente foi importante mostrar que existem distorções da imagem de Deus segundo relacionamentos humanos, culturais e sociais. A seguir, em contraposição às imagens distorcidas criadas pelo homem, está a verdadeira imagem de Deus que é o próprio Cristo Jesus, que em sua pessoa revelou ao mundo o verdadeiro Deus (cf. Cl 1,15). Cabe agora construir a dinâmica pela qual as imagens distorcidas de Deus é substituída gradativamente pela verdadeira imagem do Deus de Jesus Cristo.

Aqueles que iniciam uma jornada de busca a ter um modo mais pessoal de relação com Deus, não tardam em notar que o sentimento da crença de que Deus tudo perdoa e nos ama do jeito que somos não é tão forte quanto se acredita.[38] Durante o desenvolvimento do relacionamento interpessoal com Deus, pela oração, a relutância, a impaciência e a raiva aparecem e são rapidamente escondidas em algum canto escuro da consciência. A transparência, a confiança e a verdade dificilmente são a marca inicial por parte de quem ora, o que fatalmente provoca um relacionamento superficial e manipulado com Deus. A busca do Deus de Jesus Cristo é um caminho a ser feito com paciência e generosidade para consigo mesmo. Simone Pacot, advogada francesa da Corte de Apelação de Paris e co-fundadora da associação ecumênica Bethesda, diz com muita propriedade que “nossa história não pode ser modificada. Porém, em contrapartida, é possível mudar as consequências de nosso passado sobre o nosso presente”.[39]

Deus ama a todos profundamente e resgata a vida entorpecida dentro do homem. O homem deseja a união com Deus, mas tem medo dessa união. Nesta perspectiva está a visão pequena do Deus que pedirá coisas que vão impor sacrifícios. Barry explica que “existe o medo de ser reprimido, de perder a identidade, da aceitação da finitude e da morte. A resistência à união tem raízes fortes e profundas”.[3_] Ao mesmo tempo existe a tendência a não se dar valor a conquistas fáceis. Sacrifício e martírio estão intimamente ligados a relações mais profundas com Deus. Este pensamento acaba por colocar Deus mais distante e de certa forma inacessível. Neste sentido, surge o Deus de Abraão que pedirá os inúmeros Isacs que sustentam o sentimento de uma vida feliz. O Deus misericordioso, que ama incondicionalmente e que deseja restituir a vida plena, fica perdido em algum lugar quase como uma lembrança incerta.

Urge a necessidade de recuperar a imagem do Deus verdadeiro para que se estabeleça uma relação interpessoal com Ele, pautada na liberdade. Trata-se de sair do aprisionamento que as imagens distorcidas de Deus nos impõem para trilhar um caminho novo, único e pessoal com o Deus de Jesus Cristo. Porém, este caminho supõe a companhia de alguém que já o percorreu e que tenha o dom da escuta e do discernimento para nos ajudar a trilhá-lo de forma enriquecedora. Caminhar junto é o convite que se faz para purificar as imagens distorcidas de Deus e restabelecer a relação com o Deus Amor.

1 O acompanhamento espiritual e o Deus do acompanhado

Durante o processo de desenvolvimento da relação com Deus, ainda que a pessoa esteja numa relação sob a perspectiva de uma imagem deturpada de Deus, ocorrem momentos em que a pessoa ou desejará conhecer mais a Deus ou simplesmente se cansa e deseja permanecer no ponto que já alcançou nesta relação. Aqueles que optam continuar na busca de uma intimidade e conhecimento mais profundo de Deus entrarão no campo das experiências vividas de Deus e não no campo de conversa discursiva sobre ideias de Deus.[41]

A tendência daquele que se vê desejoso de saber mais sobre Deus é de buscar relacionamentos com pessoas que tenham por hábito falar de Deus, que vivam com clareza a presença de Deus e conhecem, por experiência própria, os percalços deste caminho relacional. Abre-se assim a oportunidade de que a pessoa encontre alguém que já fez este caminho e agora se dedique a acompanhar outros durante esta jornada. Os que acompanham o relacionamento das pessoas com Deus denominam-se acompanhantes espirituais e os que recebem o acompanhamento denominam-se acompanhados. Acompanhantes ajudam os acompanhados a identificarem a ação de Deus em sua vida e a reagirem de forma expansiva e acolhedora a esta ação. Embora o relacionamento entre acompanhante e acompanhado seja importante, o relacionamento entre o acompanhado e Deus é imprescindível, pois Deus surgiu primeiro na vida do acompanhado e independe da ação do acompanhante[42].

Um dos primeiros passos do acompanhante é conhecer o Deus do acompanhado. Diversas perguntas colhem informações que irão auxiliar tanto a conhecer o momento do acompanhado quanto identificar como será a interação nesta relação. Qual é a imagem de Deus que o acompanhado tem para si? Qual é o Deus que aparece em sua oração? Quais são os sentimentos que a oração desperta nele? Como ela acontece em sua vida? O que Deus lhe fala? O que o acompanhado responde a Deus? Quais são os frutos da oração? Qual a capacidade de introspecção e contemplação das passagens bíblicas? O acompanhante deve ter claro para si que nas primeiras interações o acompanhado tem muito do que falar, mas talvez não o saiba como.

Em linguagem simples, confiante e amorosa o acompanhante deve estimular o acompanhado, baseado naquilo que o Senhor vai encontrando nele e não em uma predefinição pessoal que estabeleceu a princípio como regra. Saber o que levou o acompanhado a procurar acompanhamento espiritual é importante para compor o quadro relacional como um todo. O acompanhado, ao escutar sua própria voz falando de temas que até então tinha somente em sua mente e em seus pensamentos, faz com que aos poucos vá tomando propriedade e consciência de como vê Deus e de como interage com Ele[43].

De posse deste material o acompanhante deve sugerir ao acompanhado que quando em oração divida este conteúdo com Deus e que busque perceber como Deus lhe responde. Em sequência, durante o acompanhamento, deve partilhar o fruto destas orações. Aos poucos começará a ficar clara a imagem de qual Deus aparece nas orações do acompanhado: a do Deus de Jesus Cristo ou de alguma imagem distorcida a ser trabalhada. O acompanhamento espiritual visa também à purificação da imagem que o acompanhado tem de Deus para que sua relação com Ele seja de fato pautada pelo encontro com o verdadeiro Deus de Jesus Cristo.

2 O encontro com o verdadeiro Deus de Jesus Cristo

As informações iniciais de um acompanhado são, em sua maioria, um livro aberto. Através das perguntas dos primeiros encontros é possível perceber que tipo de relação a pessoa tem com Deus. A coluna principal, que sustenta a relação com Deus e seu Filho, é a consciência e a total aceitação de que Deus é puro amor (cf. 1Jo 4,8). Que em Cristo, por Cristo e com Cristo, Deus criou o mundo (cf. Cl 1,16), veio e se revelou aos homens (cf. Jo 1,14-18), para a nossa salvação. Que Ele é pura misericórdia e aguarda o livre retorno dos filhos extraviados (cf. Lc 15,1-32). Este é o Deus de Jesus Cristo.[44]

Olhar contemplativamente a criação de Deus é uma das formas mais simples de conhecer quem é este que criou o mar, as árvores, as flores, os pássaros sem que seja necessário elaborar complicadas teorias sobre Deus. Ele se revela no colorido diversificado das flores, nas mais variadas formas e desenhos de árvores, no movimento calmo ou agitado do mar com suas rítmicas ondas espumantes que tocam a terra. O germinar de sementes que se transformam em grandes frutos. Com os sentidos olhar o brilho das estrelas, ouvir o canto dos pássaros ou das baleias, sentir o perfume das flores ou do ar após a chuva, provar a água ou os frutos, tocar os animais, sentir seja o vento, o calor do sol entre outras tantas alternativas da criação. Fazer isto é olhar a Deus e orar com e sobre Ele.

Olhar mais profundamente a Deus seria observar contemplativamente a noite, com suas estrelas e pensar no universo. Pedir a Deus para que se dê a conhecer e se torne presente.[45] “O universo não é Deus, mas sim sua criatura e um lugar privilegiado para encontra-lo”[46], bem como para experimentar a pequenez do ser humano perante esta imensidão. Orar o salmo 139 contemplando o firmamento é a experiência fundante de se ver criatura perante seu Criador. Abrir-se ao amor de Deus é aceitar-se como criatura neste mundo: “Iahweh, [...] tu me sondas e conheces: conhece meu sentar e meu levantar, de longe, penetras o meu pensamento; examinas o meu andar e meu deitar, meus caminhos todos são familiares a ti.” (Sl 139, 1-3).

A imensidão pode abrir ou intensificar o medo do desconhecido. O ser humano frente ao que não conhece não tem forças para seguir. O acompanhado ao orar Isaías 43, substituindo Israel por seu próprio nome, sente como se Deus falasse diretamente com ele e pudesse compreender a dimensão da mão divina que o ama, o acolhe, o protege, o perdoa e espera o passo a ser dado, ainda que inseguramente, para dar a mão e junto caminhar.[47]

O encontro com o Deus de Jesus Cristo se dá, gradativamente, no próprio Jesus Cristo. O caminho é feito observando e orando os passos de Jesus no Novo Testamento. O Papa Bento XVI em sua encíclica Deus é amor explica que no encontro com a pessoa de Jesus,
revela-se com clareza que o amor não é apenas um sentimento. Os sentimentos vão e vem. O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas não é a totalidade do amor [...] O encontro com as manifestações visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da alegria, que nasce da experiência de ser amados. [...] O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à d’Ele une o intelecto, vontade e sentimento no ato globalizante do amor. [...] o amor nunca está “concluído” e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece [...]. A história de amor entre Deus e o homem consiste precisamente no fato de que esta comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais... [48]

O acompanhado, gradativamente, desperta para uma forma diferenciada da percepção do amor de Deus em tudo. Esta semente gerará os frutos necessários para que de forma delicada Deus vá trabalhando aquele que deseja crescer na intimidade e na busca da vontade de Deus em sua vida.

3 Viver a relação com Deus no dia a dia

Desabrochar para o amor de Deus é como recriar a vida. O relacionamento iniciado com simplicidade faz descobrir que existem sentimentos mais profundos a partilhar.[49] Aos poucos o acompanhado reconhecerá a dinâmica da oração espelhada em seu modo de viver diariamente. Consequentemente, em cada ação brotará matéria para a oração.

Consciente de que Deus é amor e por amor ensina, corrige, guia, mostra o que deve ser transformado, o acompanhado aprende que onde há resistência existe crescimento, desde que debaixo de entrega confiante a Deus. Também aprende que o diálogo com Deus deve ser autêntico. Segundo Barry, “a oração fará o acompanhado saber que não está sendo ele mesmo com o Senhor. A atenção ao diálogo com o Senhor ajuda a discernir em que ponto se pode estar enganando a si próprio para que sua vida não seja perturbada”[50].

Deus não força que O aceitem. Ele deixa seus filhos livres para prestar ou não atenção às experiências diárias que falam dentro de seu coração. Quando ocorre uma conscientização, ainda que fugaz, da ação de Deus, realiza-se um sublime momento de oração. Quanto mais o amor de Deus penetra no acompanhado, o acompanhante tem oportunidade de ajudar a este a identificar as transformações que ocorrem dentro dele. É um novo tipo de amor que nasce. Um amor que suporta o trabalho de Deus modificando as percepções incorretas de Sua própria imagem. É na vida cotidiana que o acompanhado vai confrontar suas convicções com o novo conhecimento. Mais do que nunca é importante “prestar atenção ao Senhor conforme Ele se revela nas Escrituras, na Criação, na própria vida de quem ora e no mundo”.[51] Como uma espiral infinita, a dinâmica orar – agir – orar conforma a vida daquele que busca pouco a pouco aprofundar-se na intimidade com Deus. Esta intimidade que se busca não é uma intimidade egocêntrica encerrada em si mesma. A intimidade com Deus alimenta-se da vida diária vivida no mundo, enfrentando desafios e exercendo opções que se confrontam com os direcionamentos de Cristo.

Este caminho requer que o acompanhante possua uma vida sólida de oração. É de uma delicadeza impar acompanhar os primeiros passos de alguém que busca um encontro mais pessoal com Deus. Feliz é a decisão daquele que busca um acompanhante que o guie nesta jornada de descobrimentos inimagináveis perante a lógica humana. Por outro lado, o acompanhado nem sempre tem consciência que carrega imagens distorcidas de Deus consigo, apenas tem certas resistências ou críticas sobre as quais não sabe definir claramente o motivo. Porém, perante uma condução clara e esclarecedora onde cada vez mais desponta o Deus de Jesus, surge a condição ideal para que conceitos pessoais sejam confrontados e redefinidos.

É mais que importante eliminar as imagens distorcidas de Deus que permeiam muitos crentes a fim de que possa ser restabelecida uma sociedade mais harmônica e comprometida com os valores cristãos.

Conclusão

Matar nossos deuses é assim que José Maria Mardones intitula o livro que norteou as reflexões deste trabalho. Trata-se de imagens distorcidas e distantes do verdadeiro Deus que Jesus Cristo revelou ao mundo, que permeiam o mundo de muitos cristãos. Imagens estas que acabam por perturbar o desenvolvimento sadio de uma relação filial com Deus. Imagens que quem as carrega espalha como se fossem verdadeiras, destruindo gradativamente a possibilidade de uma sociedade melhor. Neste sentido, Deus é uma carga pesada, que provoca medo, repressão e que gera o desejo de não se aproximar. É necessário mudar esta visão para que haja uma relação interpessoal com o verdadeiro Deus revelado por Jesus Cristo.

O Deus de Jesus Cristo está lá sempre como O foi. É mais que necessário que os cristãos permitam, abram espaço para que Deus seja Deus. Por isso, é necessário demonstrar que as imagens opressoras de Deus são fruto da criação humana. Elas são consequência de má formação no aprendizado, foi desvio que brotou dentro do meio cultural e religioso em que a pessoa vive.[52] Somos filhos amados, muito amados de Deus. Segundo Paulo, “com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai!” (Rm 8,15).

A purificação das imagens distorcidas de Deus torna-se dever de todo cristão esclarecido. Aqueles que atuam no ministério do acompanhamento espiritual devem estar atentos e prontos a clarificar, apontar e dar norte àqueles que ainda estão fechados dentro de um entendimento pequeno e de um Deus moralista e punitivo.

Ainda como ação, é necessário revisitar a formação daqueles que estão à frente de ministérios educativos e formativos da fé católica. Trazer a boa nova que o reino de Deus está perto é a melhor mensagem que se pode presentear um irmão. Não só que o reino de Deus está perto, mas que efetivamente este reino está aqui e que Deus nos presenteou por amor e que Jesus veio especialmente ao mundo para proclamá-lo. É através desta mensagem que aos poucos o mundo poderá ser pacificado, a fraternidade tenderá a retornar entre os povos, a tomada de consciência de que a guerra não é o meio de solucionar conflitos poderá prosperar, que a falta de tolerância não levará a um melhor mundo, que ideologias políticas de confronto não encontrarão terreno fértil para sua propagação.

Cada ser humano que se reconheça amado por Deus deve trabalhar para que Ele seja conhecido e desejado tal como foi apresentado por Jesus Cristo. Matar os pequenos deuses e deixar viver o único Deus, o Deus do amor. É este o caminho do cristão.

Bibliografia

BARRY, William A. Deus e você: a oração como relacionamento pessoal. 7.ed. São Paulo: Loyola, 2001.

BARRY, William A.; CONNOLLY, William J. A prática da direção espiritual. São Paulo: Loyola, 1985.

BENTO XVI, Papa. Carta encíclica Deus é amor. São Paulo: Loyola, 2006.

BÍBLIA de Jerusalém. Nova ed. rev. e amp. São Paulo: Paulus, 2002.

CASTILHO, José Maria. Deus e a nossa felicidade. São Paulo: Loyola, 2006.

CYRINO, Fernando. Autoconhecimento e Orientação Espiritual: Eneagrama. Belo Horizonte: FAJE. 2014. Anotações pessoais de explicações em aula durante estudo dos tipos de Eneagrama.

FIORES, Stefano de. GOFFI, Tulio (Org.). Dicionário de Espiritualidade. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2005.

McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. 8.ed. São Paulo: Paulus, 2003.

MARDONES, José Maria. Matar nossos deuses: Em que Deus acreditar? São Paulo: Ave- Maria, 2009.

MORI, Geraldo De. Antropologia teológica e orientação espiritual. Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2015. Apostila.

PACOT, Simone. A evangelização das profundezas: nas dimensões psicológica e espiritual. Aparecida: Santuário, 2001.

___
[1] MARDONES, José Maria. Matar nossos deuses: em que Deus acreditar? São Paulo: Ave-Maria, 2009. p. 12. Esta obra é a fonte principal que norteia as reflexões deste trabalho.
[2] Ibid., p. 13.
[3] MARDONES, Matar nossos deuses, p.12. 
[4] MARIOTTI, P. Imagem. In: DICIONÁRIO de Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993. p.566-573.
[5] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 22. 6 CYRINO, Fernando. Autoconhecimento e Orientação Espiritual: Eneagrama. Belo Horizonte: FAJE, 2014. Anotações pessoais da autora de explicações em aula durante estudo dos tipos no Eneagrama.
[7] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 23-24.
[8] Ibid.
[9] Ibid., p. 33.
[10 ] BARRY, William. Deus e você: a oração como relacionamento pessoal. 7.ed. São Paulo: Loyola, 2001. p. 37.
[11] CASTILHO, José Maria. Deus e nossa felicidade. São Paulo: Loyola, 2006. p. 166.
[12] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 80.
[13] SACRIFÍCIO. In: MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. 8.ed. São Paulo: Paulus, 2003. p. 822.
[14] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 86-87.
[15] Ibid., p. 88.
[16] Ibid., p. 105.
[17] Ibid., p. 106.
[18] Ibid., p. 107.
[19] Ibid., p. 108.
[20] Ibid., p. 109.
[21] Ibid., p. 110.
[22] Ibid., p. 44.
[23] CASTILHO, Deus e nossa felicidade, p. 23.
[24] Ibid.
[25] Ibid., p. 25.
[26] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 35.
[27] Ibid., p. 37.
[28] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 38.
[29] Ibid., p. 39.
[30] Ibid., p. 42.
[31] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 91.
[32] Ibid., p. 86.
[33] Ibid., p. 91. 
[34] Ibid., p. 81.
[35] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 112.
[36] Ibid., p. 113.
[37] Ibid., p. 116.
[38] BARRY, Deus e você, p. 38.
[39] PACOT, Simone. A evangelização das profundezas: nas dimensões psicológica e espiritual. Aparecida: Santuário, 2001. p. 7.
[40] BARRY, Deus e você, p. 36.
[41] BARRY, A prática da direção espiritual, p. 44.
[42] Ibid., p. 43.
[43] Ibid., p. 74.
[44] MORI, Geraldo De. Antropologia teológica e orientação espiritual. Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2015. Apostila.
[45] BARRY, Deus e você, p. 21.
[46] Ibid., p. 23.
[47] Ibid., p. 25.
[48] BENTO XVI, Encíclica Deus é amor. São Paulo: Paulus, 2006, p. 24.
[49] BARRY, A prática da direção espiritual, p. 83.
[50] Ibid., p. 114.
[51] BARRY, A prática da direção espiritual, p. 58.
[52] MARDONES, Matar nossos deuses, p. 12.

___
Monografia apresentada ao Curso de Pós Graduação Lato Sensu da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisição parcial à obtenção do título de pós-graduada em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual.
Orientadora: Profa. Ms. Rosana Araujo Viveiros
BELO HORIZONTE
FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2015

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL À LUZ DAS REGRAS DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA

EFOE - Escola de Formação de Orientadores Espirituais 2025