INTRODUÇÃO À VIDA, INCLUSIVE INTELECTUAL

LIBÂNIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. -- 5. ed. -- São Paulo : Loyola, 2014. 307 p.  -- (Coleção humanística). ISBN 978-85-15-02329-5.

João Batista Libânio deu-se como testemunha de educação no sentido “lato”. Como padre jesuíta, viveu os anos de transformação da Igreja por ocasião do Concílio Vaticano II e nutriu-se daqueles teólogos que estiveram na gênese do Concílio, especialmente de Karl Rahner. No campo pastoral, durante muitos anos ministrou cursos e palestras em países da América Latina, Europa e África. No campo intelectual, dedicou-se à tarefa de professor e escritor. Lecionou teologia em nível de graduação e pós-graduação na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte com tudo o que implica tal tipo de atividade: aula, direção de estudos, orientação de monografias, dissertações e teses. E em articulação com tal função, dedicou considerável tempo para escrever artigos e livros. Assim, no “Introdução à vida intelectual” continua a se dar como testemunha de vida profética, compartilhando generosamente alguns resultados colhidos no caminho. “Este livro nasceu muito mais da experiência que de leituras. A bibliografia mais importante foi a vida”. Libânio passou aos 30 de janeiro de 2014. Vive entre nós por sua obra, seus escritos e seus filhos espirituais.

Nas palavras do autor, “este não é um livro simplesmente para se lido. É um roteiro teórico-prático para a vida de estudo”. Está organizado em duas partes, assim como o título: a primeira, pode-se dizer, “introduz à vida”, substantiva; a segunda, adjetiva. Na primeira parte, “Atitudes fundamentais da vocação intelectual”, em oito capítulos, conduz o leitor a ver a base principal de condutas que contribuem para que se exprima em substância e existência. Provoca o aluno a procurar e a enxergar “onde estou” na vida, inclusive intelectual. Na segunda parte, “Aspectos da vida de estudo”, faz juntar ao substantivo (vida), para o qualificar com o adjetivo (intelectual), ferramentas muito práticas. Trata do como fazer efetivamente. Dá as ferramentas para o “roteiro teórico-prático para a vida de estudo”.

Ao roteirizar, o autor facilita ao aluno (leitor) os primeiros passos ao (re)conhecimento das atitudes fundamentais para a sua vida, inclusive intelectual. A naturalidade do encadeamento lógico dos assuntos tratados em cada capítulo impressiona. O modo como o tema precedente prepara, elucida, ilumina o caminho a ser percorrido no tema seguinte, já pode provocar mudanças sensíveis no comportamento do leitor (aluno), mesmo se não bastante concentrado.

O capítulo 1, que trata da vocação intelectual, prepara o leitor para a jornada “da experiência profunda, da realização humana, da inspiração maior que bate em nosso coração”.  Libânio relembra a distinção entre profissão e vocação, esta como a voz que chama, aquela como meio de manifestação. Evidencia a importância de uma profissão dirigida pela vocação: “a profissão ganha muito quando consegue despertar no profissional o sabor da vocação”. O autor passeia por tópicos esclarecedores sobre a vocação intelectual como a necessidade da superação de um saber simplesmente técnico, posto que “uma vida intelectual bem regrada amadurece a personalidade”. Ele admira uma tradição longeva, para que não se acredite ter “inventado a roda”, pois os antigos já pensaram muita coisa que pode encurtar a jornada de uma vida “bem regrada”, e que se possa ainda “maravilhar-se diante do significado da realidade”, pois “o grau supremo que o homem pode chegar é a admiração”. Ele dá sentido às exigências de uma vocação intelectual supondo certo nível de equilíbrio do afeto, uma alma sadia pela virtude, o gosto pela solidão como concentração, como convívio com o mistério, e que isto “implica, porém, um caminho de disciplina, de responsabilidade, de horas e horas de estudo, de tenacidade, de vigílias, de trabalho, de aplicação”. E, para encerrar o capítulo, ele compartilha sua visão cristã na qual inclui o trabalho intelectual como que “aproxima-se desse dom [da profecia], que já prepara o pregador da Palavra”.

Preparado para acompanhar o viandante na jornada, o autor parte desde o início da vida intelectual, que é aprender a pensar, tema do capítulo 2. Não trata do pensar espontâneo, processo mental de aprender “coisas, conhecimentos, saberes, mecanismos, comportamentos”. Essas coisas todos os animais o fazem. Um pombo aprende a premer um botão para obter comida. Um cão sabe a hora de comer ou a disposição de ânimo de seu dono ou sua dona. Muitos primatas aprendem a manipular mecanismos diversos. Adestramos (adequamos o comportamento) de primatas, cavalos, porcos, vacas, golfinhos, focas… Mas, o autor convida a pensar o pensar. “Interessa-nos aqui ‘aprender a pensar’. Isso significa passar de um nível espontâneo, primeiro, imediato a um nível reflexo, segundo, mediado.” (idem).

Se se aprende a pensar, aprende-se a aprender. O aluno passa a provocador do processo. Deixa de ser mero “fruto do meio” e passa a dar frutos no meio. Questiona e questiona-se com perguntas cada vez mais ou profundas ou elevadas, referidas à vida, ao ser, aos valores transcendentais. Este processo exige e leva a desenvolver uma “atitude realista e criativa”, título do capítulo 3. “De modo prático, a pessoa precisa saber conjugar realisticamente objetivos e meios”. Aqui o autor insere a necessidade de uma visão realista de si e dos outros, dos meios e do tempo disponíveis, da economia e do desperdício, e orienta à dar melhor utilidade aos recursos disponíveis. E não encerra o capítulo sem dar uma “pitada de utopia e criatividade”, sem as quais, “ficaremos escravos, pequenos, presos à camisa de força de nossos planos”.

Tal atitude realista e criativa evoca "honestidade" consigo e com os outros e com o ambiente, tema do capítulo 4. Voltado especificamente à intelectualidade, o autor concentra-se numa “honestidade intelectual que diz respeito à maneira de trabalhar o pensamento e os escritos de outra pessoa”. Para trabalhar o pensamento alheio convoca ao cultivo do espírito científico. Não “somente aquilo que é verificável pela experiência, materializável e submetido a um rigoroso procedimento”, mas também o espírito científico vai se manifestar na maneira de tratar as fontes, de interpretar os textos em seu contexto, na correta transposição hermenêutica, no respeito aos diferentes métodos, no rigor das citações, no manuseio exato da bibliografia. É uma forma de exercer a honestidade intelectual (p.75). Na conclusão do capítulo 4, Libânio menciona que “os guardiães de ortodoxias e os censores de plantão costumam ser pouco honestos”, afirmando que “honestidade intelectual é proceder com humildade, modéstia, cautela nas críticas”.  

Proceder assim, exige e leva o aprendiz a intelectual, a uma atitude de "abertura ao diferente, ao novo, ao questionamento”, seja no nível cultural seja no nível afetivo seja no nível teologal. “Implica uma harmonia de personalidade, em que a inteligência a afetividade e a dimensão espiritual da pessoa estejam sempre em atitude de escuta”. O capítulo 5 trata dessa “abertura”.

No capítulo 6, o autor convida a elaborar o “senso crítico”, “para superar as primeiras impressões, o óbvio, o imediato, o visivelmente aparente, indo às raízes da realidade”. “O senso crítico é um acordar dos sonos da consciência ingênua, da alienação, da irresponsabilidade imatura”. Libânio mostra uma diferença fundamental do senso cítico moderno (e pós-moderno) que antes permanecia circunscrito dentro de uma tradição, seja qual for, e hoje “o homem percebe a interioridade de sua consciência enquanto oposta à exterioridade do mundo”, “descobre a subjetividade”. Como “sujeito das significações e dos valores, pelos quais compreende o mundo” (idem) o homem responde per si, independentemente da tradição. Por isso é chamado à responsabilidade e “adultecer”.

No capítulo 7, “Responsabilidade na vida intelectual”, O autor põe o leitor defronte de dois mundos em tensão: o mundo das suas verdades e o mundo das verdades de seus pares. Daí surge naturalmente outra tensão noutros níveis: a consciência versus o cientificismo, a sociedade contra o estado, a razão em oposição à fé. Ainda, segundo o autor, o que nos abriu o espaço da responsabilidade foi a clareza da nossa consciência, que nos separou do simples mundo da natureza, onde regem as leis deterministas.

As leis da natureza, os cataclismos, os instintos animais, não são responsabilizáveis. “Responsabilidade vincula-se necessariamente a liberdade”. Liberdade que dirige a decisão ao perseguimento de seus objetivos de bondade ou de perversidade, segundo a natureza daquele que responde. O responsável responde por algo diante de alguém, em relação a alguém, responsabilidade diante de si, responsabilidade em relação aos outros, responsabilidade em relação ao cosmos, diante da verdade, diante da fé.... Responsabilidade por buscar incessantemente o “equilíbrio entre empenho pessoal e graça de Deus”.

Tendo mostrado que, “a vida intelectual participa da tensão inerente à vida humana”, o autor afirma que “a vida intelectual constrói-se sobre o polo da consciência crítica, da liberdade, da autonomia, da própria maneira de pensar e da assimilação, da aprendizagem do ensinado, da docilidade ao mestre”. O capítulo 8, “aprendizagem, assimilação e originalidade”, convida e ensina a refletir, “o primeiro passo para uma assimilação consciente e discernida”, e dá, efetivamente, os primeiros passos pedagógicos do processo filosófico para aprendizagem chamado de reflexão.

A reflexão, sugere Libânio, pode começar com uma questão interrogativa. Ele convida a penetrar a questão com palavras diferentes, buscando o significado dos termos principais, escarafunchando a estrutura da questão e sua lógica, pressupostos e contextos. Propõe ousar objeções, evidência de compreensão. Assim, a partir dos pressupostos pessoais, os objetos da aprendizagem assimilados integram-se nos diversos planos e dimensões do ser do aprendiz, de forma que “o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível”.

Guardado de modo irrepreensível, o ser integral se expressa com originalidade, mostra o resultado do trabalho intelectual em si, a partir de si mesmo para o meio em que está em benefício dos seus elementos constituintes. Mesmo tendo partido de pensamento alheio, contribui acrescentando, multiplicando os talentos deixados aos seus cuidados.

De lambuja, Libânio ao concluir o oitavo capitulo, oferece singelas orientações práticas sobre a importância da mantença da saúde física e psíquica, do descanso, de algumas atitudes psicológicas,  antropológicas e ecológicas (do ambiente em geral).

Na segunda parte do livro, “sem ser estritamente um texto de metodologia científica, oferece sugestões práticas para as diferentes atividades intelectuais”. O autor reconhece a importância capital das reuniões, dos trabalhos em grupo, tanto na vida acadêmica quanto nas outras atividades em sociedade, tanto na produção quando na socialização de produtos e de conhecimentos (este produto de uma atividade intelectual). Para que se obtenha bom resultado, Libânio oferece noções dos elementos básicos desde a preparação até a condução de reuniões exitosas, no capítulo 9.

As dicas para o “processo de produção intelectual” vêm no capítulo 10. Como o resultado da produção intelectual socializa-se principalmente pela escrita, o autor dá ênfase à tarefa de escrever, e de escrever bem. “Cabe, portanto, ressuscitar a seriedade da arte de escrever, sua responsabilidade, sua gravidade”. Por isso e para isso toca em fatores decisivos, como os herdados (experiência familiar de intelectualidade), os de personalidade, de vontade e de liberdade. Desde a escolha do assunto, até a estruturação do trabalho o autor oferece vários esquemas teóricos já acreditados pelo uso.

No capítulo 11, “estudo de um tema ou uma tese”, concentrando-se na produção acadêmica, Libânio recorre “à experiência da tradição medieval” sem o excesso de formalismo, mas aproveitando da utilidade da sua formalidade. Primeiro apresenta os passos para “estudo de um tema ou exame de uma tese” em particular, seguido dos passos para o “estudo ou discussão em grupo”. Especifica orientações de cunho pessoal e espiritual para o bom êxito. Considera diversos aspectos da preparação do aluno, tanto das condições físicas e psíquicas quanto das condições pedagógicas. Oferece sugestões didáticas e dá um breve esquema de todo método.

Segue, no capítulo 12, a “confecção de uma monografia ou dissertação”, dada a sua importância crescente no mundo acadêmico. Para não ser redundante, diferencia dois aspectos: “um de natureza epistemológica, outro didática”, e oferece “subsídios de ajuda na elaboração teórica do método e também na confecção prática do texto”.

Não poderia deixar de lato orientações sobre a leitura (capítulo 13). “Ponto fundamental no crescimento da vida intelectual é o bom desempenho na prática da leitura”. Por isso o texto contém subsídios que auxiliam a melhorar a qualidade da leitura. Mas, alerta que “aprende-se a ler lendo”.
No último capítulo o texto trata dos “três pilares do sistema acadêmico: a aula magistral, o seminário, a  tutoria”. A relação entre os três pilares será harmoniosa na razão da maturidade intelectual e afetiva de cada aluno. Não há fórmula definitiva. A aula magistral é útil nos inícios, para que professor e aluno economizem tempo e energia. O professor oferece resumidamente resultados da sua experiência que jamais se encontrarão em livros e apostilas. “Os livros são mortos, as aulas revelam a todo momento o pensamento sempre em gestação do professor”. O aluno parte de algo já elaborado, não se perde em divagações.

Conforme vai amadurecendo sua intelectualidade, o aluno sai de si mesmo e aprende também a trabalhar em grupo (é uma necessidade natural, antropológica) e poderá ter mais proveito de outras formas de aprendizagem com os seminários. Da finalidade dos seminários o autor esclarece:

É um recurso didático que introduz e incia o aluno no mundo da pesquisa. Sua finalidade principal é transmitir uma metodologia correta em vista da obtenção de novos conhecimentos (...) Aprende-se a aprender (p. 276s).

A tutoria é outro recurso didático. Pressupõe um intercâmbio fraterno entre tutor e tutelado, entre orientador e orientado, entre professor e aluno para o seu crescimento qualitativo. Crescem o aluno e o professor. Exige e leva a um relacionamento pessoal além de acadêmico, onde o aluno tem oportunidade para exprimir seus anseios e suas expectativas, suas dificuldades e o resultado das suas elucubrações. Na mesma oportunidade, o professor tem ocasião de exercitar o seu carisma, de “brilhar a sua luz”.

Enfim, o texto transpassa a forma e a formatação comumente encontradas na enorme e vasta bibliografia sobre metodologia disponível em muitos e diversos meios (físicos e eletromagnéticos). Ao exceder os saberes técnicos, o autor estimula o leitor a “suas novas experiências, que completarão a leitura, enriquecendo-a”. Ele sugere sutilmente uma maneira de ser e de estar na vida, inclusive intelectual. “Remonta a uma tradição das Ordens jesuítica e dominicana de cultivar a vida intelectual como um todo (...) Não se estuda só com a inteligência. É todo o ser humano que se compromete com as lides intelectuais”.

Chamado ao amor, Libânio responde: Passeamos pelo mundo da gratuidade, da realização humana profunda. Pretendemos superar o espaço da produtividade, da pura necessidade. Inserimo-nos na tradição que chama de humanidades um tipo de saber, uma qualidade de pensar que parte da experiência primigênia da admiração. Buscamos responder ao chamado interior que habita todo o ser (p.19).

No “Introdução à vida intelectual” Libânio “dá um show” de Pedagogia, de Filosofia, de Teologia… de Poesia e quejandos.

---
FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual (ECOE)
Disciplina: Seminário de Metodologia Científica I, 2016, módulo I
Professora: Rosana Araujo Viveiros
Aluno: Sergio Vieira Holtz Filho
Data: 31.03.2016

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL À LUZ DAS REGRAS DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA

AS IMAGENS DISTORCIDAS DO DEUS DE JESUS E O ACOMPANHAMENTO ESPIRITUAL

EFOE - Escola de Formação de Orientadores Espirituais 2025