AS ANOTAÇÕES DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E COMO SUSTENTAM UM MÉTODO DE ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL
Acompanhar e orientar por que? Para quê? Porque “a direção espiritual deve sua capacidade de durar no tempo ao fato de ser uma prática que vem ao encontro de uma necessidade humana fundamental”, para “não perder-se naquela viagem particular que é a busca da salvação própria”. Para tornar-se participante do amor na sua totalidade unificada, que inclui e compõe soma, psique e pneuma incondicionalmente.
Para “não perder-se naquela viagem particular” em que o homem inteiro se dirige, Alfredo Sampaio Costa sugere, a quem possa interessar em ajudar as almas, que imagine, reflita e, assim, desenvolva a vontade de que os exemplos dos antigos heróis
Para “não perder-se naquela viagem particular” em que o homem inteiro se dirige, Alfredo Sampaio Costa sugere, a quem possa interessar em ajudar as almas, que imagine, reflita e, assim, desenvolva a vontade de que os exemplos dos antigos heróis
"... falem na sua vida, na sua experiência, buscando captar em meio às diferentes formas de acompanhamento, quais são os fundamentos da orientação espiritual, que ao longo da história, nas diversas expressões, sempre estão presentes" (SAMPAIO COSTA, 2014, p. 1).
Ao longo da história, importa considerar cada uma das diferentes formas de acompanhamento, não como um patchwork, uma manta de retalhos, mas como um corpo vivo, cujas partes constituem um todo, evoluído desde uma célula primitiva, e procurar a ideia mestra que lhe deu origem. Ao procurar a ideia mestra, deparei-me com Inácio de Loyola, que aumentou a minha esperança na possibilidade de me resgatar. Talvez porque foi moço comum, apaixonado, dado aos encantamento do mundo; teve uma vida mundana e, parece, desfrutou-a exuberantemente. Porque pareceu-me próximo da minha própria humanidade.
O legado de Inácio de Loyola
O legado de Inácio de Loyola está baseado nos Exercícios Espirituais (EE), que compôs de textos da Sagrada Escritura e da sua experiência pessoal, e “dispôs com muito bom método para mover santamente os ânimos dos fieis”, e que tais Exercícios “são de grande utilidade e muito a propósito para o consolo e proveito espiritual”. Santo Inácio, com brevíssimas palavras, encerra uma instrução admirável, “a qual não tirou tanto dos livros quanto do magistério do Espirito Santo, e larga experiência e prática de orar”.
Nos primeiros 20 números dos EE, as Anotações, Inácio dá “indicações preciosas sobre a relação entre os interlocutores em ação durante os Exercícios, ou seja, Deus, o exercitante e aquele que guia os Exercícios”. Sua pedagogia é simples e precisa. Inicia esclarecendo a expressão Exercícios Espirituais: Por esta expressão, Exercícios Espirituais, entende-se qualquer modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal ou mentalmente, e outras atividades espirituais... [EE 1].
Pela expressão “qualquer modo” dá toda liberdade antes de apresentar o resultado da sua experiência. E para mais ilustrar segue exemplificando com uma comparação simples: “Porque, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais…”, e completa apontando o objetivo daquilo que propõe:
também se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposição de sua vida para o bem da mesma pessoa [EE1]
Para uma pessoa se preparar e dispor da sua vida para o próprio bem, Inácio dá um método, uma ordem de progressão lógica dos principais elementos ou disposições naturais, efetivamente uma ordem pedagógica para a educação do ser, “e assim salvar a sua alma”. Os EE dividem-se em quatro partes: a contemplação dos pecados; a contemplação da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo; a contemplação da sua Paixão; Ressurreição e Ascensão.
Uma ponte entre a psicologia e a espiritualidade
Numa comparação simples e imperfeita, mas ilustrativa, a contemplação dos pecados pode ser equiparada com as etapas de “reconhecimento e identificação”. Reconhecimento é o nome dado à primeira etapa nos processos psicoterapêuticos, na qual surge um questionamento, na maioria das vezes inconsciente. A pessoa é mobilizada, coloca-se em movimento rejeitando algo (físico ou abstrato). Considerando, com Inácio que a necessidade básica fundamental é “louvar, reverenciar e servir ao Amor”, não satisfazê-la é um pecado. A Identificação acontece quando há ressonância da pessoa com a necessidade básica não satisfeita (inconscientemente). Tal ressonância traz ao consciente algo que estava inconsciente, e se expressa no corpo físico através de sensações físicas, no corpo psíquico através de pensamentos vivenciados, sentimentos e emoções. Normalmente é diante dessa ressonância que a pessoa procura ajuda. Com a contemplação dos pecados, Inácio provoca a meditação consciente das necessidades básicas não satisfeitas.
A contemplação da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo comparo-a à etapa seguinte, “desidentificação”, ou seja, o discernimento critico, a analise, a reflexão articulada em diferentes aspectos em relação à aplicabilidade, diante de um modelo, neste caso Jesus de Nazaré, possível a qualquer um e a todos. A pessoa compara, mas a ressonância permanece, mobilizada pela necessidade básica natural não satisfeita e a pessoa oscila entre identificação (eu sou problema) e desidentificação (eu tenho problema), até que o conhecimento adquire um significado pessoal. A aproximação da vida de Jesus pela contemplação humaniza o exercitante; torna-o sociável, civilizado, agradável ou suportável.
Na contemplação da Paixão pode-se entender que há uma passagem, uma mudança de nível. É uma resultante de síntese do questionamento havido na etapa anterior. Não sem dor e lágrimas. Esta síntese já e aquisição do individuo, fruto do seu trabalho no uso da memória e da inteligência, e produz um diferencial tanto interno quanto externo. É a morte de um (pré)conceito, de um vício de conduta, etc... A contemplação, por sua característica vivencial, promove uma “elaboração” (sexta etapa) da própria “transformação” (quinta etapa). Ao ser tocado pelo Ser, experimentar e sentir com intensidade “esse mistério que chamamos Deus”, o individuo pode articular velhos vícios e criar possibilidades. Neste estado há, sem duvida, a colaboração, ou seja, a elaboração conjunta entre Self e ego.
A contemplação da Ressurreição e Ascensão de Jesus, o Cristo, sugere a “integração” (sétima etapa) do conhecimento na manifestação, na vida pessoal, profissional, cotidiana. Aquele individuo se torna parte intima do processo revelador e transformador da vida humana, um instrumento vivo cuja existência pessoal só tem sentido porque contribui ao corpo social. Até a “contemplação para alcançar o amor” quando há compreensão total das possibilidades e é a manifestação integral do Ser no ser.
As anotações que sustentam o método
Na sequência das Anotações, porém, encontrei o que sustenta o método de Santo Inácio: a atitude daquele que o aplica em relação ao que recebe. Quando Inácio diz “modos de a pessoa se preparar”, já na primeira Anotação, mostra uma característica marcante da sua pedagogia que é deixar, permitir, proporcionar e até facilitar que a pessoa faça o seu caminho com as próprias pernas, nas suas condições, com as suas características. “tendo em conta a idade, a ciência, o talento e não dar (...) coisa que não possa facilmente entender, e de que não possa tirar proveito”. Inácio propõe condutas pedagógicas para devolver a autonomia de quem os recebe na sua relação com Deus, valorizando e respeitando sua cultura e seu acervo de conhecimentos empíricos junto à sua individualidade. Antecipa, assim, em quase 500 anos a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire.
A Segunda Anotação insiste na pouca interferência do guia, porque o acompanhado “refletindo e raciocinando por si mesmo, encontra como explicar ou sentir um pouco melhor o assunto, seja por sua própria reflexão, seja pela graça divina”. Vê-se, em todo tempo, que Inácio indica sempre uma atitude de gentileza, respeito e humildade.
Na Terceira Anotação, “requer da nossa parte maior respeito” quando o diretor dos EE se depara com os atos da vontade do dirigido. Maior respeito “do que quando usamos inicialmente o entendimento refletindo”, porque é trabalho pessoal raciocinar, articular as ideias e pensamentos, enquanto que os atos da vontade têm “o dedo da Graça”.
“Não se julgue” ser a rigidez do modo e do método mais importante do que o a pessoa do dirigido porque
de fato acontece que (...) uns são mais lentos que outros; outros são mais diligentes, ou mais agitados e provados pelos diversos espíritos, e, por isso, algumas vezes torna-se necessário abreviar, outras prolongar (...) procurando sempre tirar o fruto conforme a matéria que se propõe [EE4].
Gentilmente, convida o exercitante a entrar nos exercícios “com grande ânimo e liberalidade” na Quinta Anotação. E na Sexta Anotação determina ao diretor prestar atenção na pessoa do dirigido, ao acompanhante do acompanhado, ao educador do educando… ao dizer: “Quando quem dá os Exercícios percebe que ao exercitante...”. Assim em todas as anotações, Inácio acolhe o outro com o máximo respeito: “não se mostre duro e severo” com o orientando, “mas bondoso e suave. Dê-lhe coragem e forças para ir adiante” (EE 7); “O que dá os Exercícios poderá explicar ao que recebe (...) conforme sentir nele a necessidade” (EE 8); Considerando a pessoa que orienta, dê-lhe somente o que pode ser útil (Cf. EE 9). Em 9, 10 e 11 considera o grau de vivência das coisas espirituais antes de propor exercício; em 12 e 13 estimula “antes mais do que menos… o tempo”; “deve-se considerar atentamente o caráter e a capacidade da pessoa, a facilidade ou os inconvenientes (EE 14). “O que dá os Exercícios não deve mover a quem os recebe...” (EE 15), porque
durante os Exercícios, quando o exercitante busca a vontade divina, é mais conveniente e muito melhor que o Criador e Senhor se comunique por si mesmo a quem lhe é todo dedicado. ...Assim, aquele que dá … não se volte nem incline a uma parte ou a outra, deixando agir diretamente o Criador com a criatura, e a criatura com o seu Criador e Senhor (EE 15).
Conclusão
Há algum tempo percebo que estudar a mente ajuda mas não dá conta das necessidades reais das pessoas. Entendo que por trás de cada personalidade vive um ser que quer mais, e Inácio me mostrou que todos os seres e o ser todo buscam a mesma coisa: o retorno à casa do Pai. Mais do que uma admoestação, o apóstolo Paulo mostra-nos uma verdade inequívoca quando diz “quer comais, quer bebais, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10, 31).
Encontrei nas Anotações dos Exercícios Espirituais a base de sustentação do método proposto pelo leigo Inácio: a atitude geral tanto de quem dá como quem os recebe. O caráter dialogal dos Exercícios não poderia ser somente revestido mas transbordante de conduta respeitosa, amorosa, gentil… nas relações entre um e outro, um que dá outro que recebe, muitas vezes recebendo mais aquele que dá, dando mais aquele que recebe.
Parece-me, então, razoável que mesmo imersos numa “mentalidade consumística, paradoxalmente unida a uma certa angústia e incerteza sobre o futuro”, qualquer pessoa consiga aplicar o método inaciano, e obter bom resultado para “salvar a própria alma”, com poucas adequações de repertório, de vocabulário, adequando-a à qualquer atividade humana, “qualquer modo de examinar a consciência…”.
Bibliografia
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JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
LOYOLA, Inácio. Escritos de Santo Inácio. O relato do peregrino, nova edição do título anterior Autobiografia de Santo Inácio de Loyola. Tradução R. Paiva, SJ. Notas Jean-Claude Dhôtel, São Paulo : Loyola, 2a. ed. 2014. ISBN 9788515033577.
LOYOLA, Sando Inácio de. Exercícios Espirituais. -- 12a. ed. -- São Paulo : Loyola, 2012. ISBN 9788515000999.
LUBIENSKA DE LENVAL, H. A educação do homem consciente. Tradução de Valeriano de Oliveira. Apresentação e adaptaão da Irmã Maria Ana de Sion. -- São Paulo : Flaboyant, [s.d].
JOÃO PAULO II, Papa. Exortação apostólica Familiaris Consortio [...] sobre a função da família cristã no mundo de hoje. Roma : Vaticana, 1981. Disponível em <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_19811122_familiaris-consortio.html>. Acesso em: 09 abr. 2016.
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SAMPAIO COSTA, A. História e fundamentos da orientação espiritual. Belo Horizonte : FAJE, 2014, (Apostila).
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FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual (ECOE)
Disciplina: História e Fundamentos da Orientação Espiritual, 2016, módulo I
Professor: Alfredo Sampaio Costa, SJ
Aluno: Sergio Vieira Holtz Filho
Data: 30.04.2016
FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual (ECOE)
Disciplina: História e Fundamentos da Orientação Espiritual, 2016, módulo I
Professor: Alfredo Sampaio Costa, SJ
Aluno: Sergio Vieira Holtz Filho
Data: 30.04.2016
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