ABORDAGEM TRANSPESSOAL NO ACOMPANHAMENTO ESPIRITUAL

Qualquer ser humano busca com sinceridade a Deus, é função instintóide, está inscrito no seu coração. Simultaneamente sentimo-nos atraídos, ou até subjugados, por paixões (não só sensuais), medos, timidez, curiosidade desmedida, ganância de domínio e de poder, avareza, inveja, ira, ... e toda expressão de um ser inconsciente sempre alerta para dirigir nossas atitudes. O apóstolo Paulo já alertava de quantas vezes vemos e aprovamos o bem, mas fazemos o mal que desaprovamos. “Quem me libertará deste meu ser, instrumento de morte?" (Rm 7,24).
Muitas tradições sugerem o autoconhecimento, um tal “conhece-te a ti mesmo”, que começa sempre cultivando o silêncio e observando o alvoroço e a desordem dos pensamentos. Recomendam um olhar atento e sincero ao que se apresenta, sem julgar nem analisar, sem aprovar nem condenar. Na continuidade do silêncio aprofunda-se e, talvez, se reconheça o que é naquele que está.
Neste ensaio simplório, referimo-nos a uma parte do estudo da força transformadora do Homem. Especificamente a duas disciplinas que concorrem para o desenvolvimento humano integral: à psicologia, como aquela que estuda as estruturas mentais e comportamentais dos indivíduos e sua aplicação, na psicoterapia, que se propõe a acompanhar o caminhante que caminha o caminho; e à oração como “máxima potência promocional dos valores humanos, como integradora da personalidade desintegrada, amadurecedora do caráter, crisol de humildade e mansidão, de paciência e amor, de silêncio e de paz” (MARTÍ BALLESTER, 1993, p. 16).
Apresentaremos, sucintamente, por primeiro a Psicologia Transpessoal, como uma força que emerge no campo da psicologia e que visa o desenvolvimento humano integral. Como aplicação prática apontaremos a Abordagem Integrativa Transpessoal, ou Abordagem Integrativa em Psicologia, desenvolvida por Vera Saldanha e apresentada em Tese de Doutorado na Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, em 2006.
Em seguida, discorreremos o acompanhamento espiritual como instrumento para suprir uma necessidade natural humana, para além de construir a sua própria identidade, de relacionar-se pessoalmente com Deus. Uma viagem particular que está inscrita no coração do Homem, a busca sincera a Deus. Antes de concluir, propomos uma pequena reflexão ou o diálogo entre ciência e religião que, acreditamos, é condição fundamental para a entender e ajudar as almas ao seu desenvolvimento em plenitude, ou seja, a sua salvação. E concluímos sugerindo que é importante empregar à “arte do acompanhamento espiritual” uma abordagem integrativa em psicologia, para ajudar qualquer alma, um ser que ama, sofre, pensa, compreende... no seu encontro pessoal com Deus.


A abordagem transpessoal em psicologia



A Psicologia Transpessoal surge com a decepção profunda com a “ciência” de alguns sobreviventes da hecatombe da primeira metade do século XX. Desde a Revolução Industrial acreditava-se que o desenvolvimento científico e tecnológico garantiria a tão almejada paz. Mas, depois de duas grandes guerras mundiais, ficou-lhes [aos decepcionados] a questão: “será que o Homem é só capaz disso? Guerras, chacinas, concorrência desleal…”, “Vamos curá-lo para quê?”
Um dos pressupostos da Psicologia Transpessoal é também e sobretudo “que os seres humanos são capazes de fazer algo maior do que guerras, preconceitos e ódios” (SALDANHA, 2008, p. 72). Inconformado com a psicologia que se praticava, Abraham Harold Maslow concentrou seus estudos no comportamento humano e motivações, buscando uma teoria sobre aspectos saudáveis da natureza humana. Na busca do ser humano saudável, ele propõe “uma abordagem ainda mais elevada, transpessoal, transhumana, centrada mais no cosmo do que nas necessidades e interesses humanos, indo além do humanismo, da identidade, da individuação e quejandos” (MASLOW, 1968, p. 12 apud SALDANHA, 2008, p. 44). Maslow foi o grande formulador dos princípios da Psicologia Transpessoal


Uma força que emerge no campo da psicologia



Psicologia transpessoal (ou “Quarta Força”) é o título dado a uma força emergente no campo da Psicologia, representada por um grupo de psicólogos e profissionais de outras áreas, de ambos os sexos, que estão interessados naquelas capacidades e potencialidades ÚLTIMAS que não possuem um lugar sistemático na teoria positivista ou behaviorista (“Primeira Força”), na teoria psicanalítica (“Segunda Força”), ou na psicologia humanística (“Terceira Força”) (SUTICH apud WEIL, 1978, p. 29).


O substantivo “psicologia” se atém ao estudo dos fenômenos psíquicos, do comportamento e dos processos mentais, enquanto o adjetivo “transpessoal” propõe práticas que integrem o psíquico ao que transcende, ou espiritual, nas dimensões manifestadas pelo indivíduo, materializando, tornando real, efetivo, Aquele que É, naquilo que está (Cf. HOLTZ FILHO, 2014, p. 25). O adjetivo deveria ser desnecessário para que não se fechassem portas nem diminuíssem possibilidades, porém, naquele momento histórico era necessário e foi importante. Que sirva, então, para elucidar! O termo já havia sido proposto por Jung ao utilizar as palavras überperson e überpersönlich em 1916 e 1917 (Cf. SIMÕES, 1997, p. 48 apud SALDANHA, 2006, p. 12), mas foi “oficializado” em 1969 com a publicação do Journal of Transpersonal Psychology, orientado pelos trabalhos de Abraham Maslow, Anthony Sutich, Victor Frankl, Stanislav Grof e James Fadiman.
Outros estudiosos também contribuíram para a acreditação da abordagem transpessoal em Psicologia. Entre eles vale destacar Roberto Greco Assagioli (1888 - 1974) que propõe uma abordagem que ele chama de Psicossíntese, apresentada ao público na obra “Ser Transpessoal”. Também é importante a contribuição de Jacob Levy Moreno (1892 - 1974), criador da psicoterapia de grupo, do psicodrama, do sociodrama, da sociatria e da sociometria. Ele afirma também que “existe uma natureza religiosa no Homem, portanto desconsiderar a religiosidade natural do ser era tirar-lhe a esperança e a possibilidade de cura” (SALDANHA, 2008, p. 61). Jacob Levy Moreno (re)aproximou a psiquiatria da religião, ao ampliar o conceito de psiquiatria para além das limitações médicas e sociológicas. Contudo, “pertence a Maslow o crédito pela formulação explícita dos princípios da Psicologia Transpessoal” (GROF, 1988, p. 143 apud SALDANHA, 2006, p. 12).


É inegável a importância das escolas e autores que precederam a abordagem Transpessoal em Psicologia quando se observa que, longe de ser um modismo passageiro, esse enfoque tem fortes raízes na própria Psicologia científica, desde seu início, em pioneiros como William James, Carl Jung, Jacob Levy Moreno, entre outros, o que possibilitou a emergência dessa abordagem na década de 60 (SALDANHA, 2008, p. 64).


Pierre Weil (1924-2008) é reconhecido pela introdução da abordagem Transpessoal no Brasil, enquanto exerceu a função de professor de Psicologia Social, de Psicologia Industrial e Psicologia Transpessoal na Universidade Federal de Belo Horizonte. Weil define a Psicologia Transpessoal como “um ramo da Psicologia especializada no estudo dos estados de consciência, lida mais frequentemente com a ‘Experiência Cósmica’ ou estados ditos ‘Superiores’ ou ‘Ampliados’ da consciência” (Weil, 1999, p. 9 apud SALDANHA, 2008, p. 42). Ele também é mentor da Associação Luso-Brasileira de Transpessoal - ALUBRAT, fundada em 21 de outubro de 1995 por Pierre Weil e Vera Saldanha, no Brasil e Mário Simões em Portugal; cofundador da Associação Internacional de Psicologia Transpessoal, da Associação Brasileira de Psicologia Aplicada, da Sociedade Brasileira de Psicoterapia, Dinâmica de Grupo e Psicodrama e da Organização das Entidades Não Governamentais Brasileiras, junto à organização da Nações Unidas (ONU).


Desenvolvimento humano integral a partir da psicologia



Pierre Weil, empenhado no desenvolvimento humano integral, conduziu seu trabalho “Transpessoal” para a saúde, a educação e organizações, cuidando para que não permanecesse intramuros de qualquer disciplina ou cátedra. Assim, a abordagem transpessoal ultrapassou o setting terapêutico.
Na área da saúde, só para citar um exemplo dentre vários, temos o Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade - ProSER, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que contempla a Psicoterapia Transpessoal e reconhece: “A Transpessoal é a linha da psicologia que inclui a espiritualidade na sua visão de Homem. Segundo esta linha, o Homem é um ser biológico, psicológico, social e espiritual” (HCFMUSP, [s.d.]).
Na educação a mesma abordagem “transformou-se” na transdisciplinaridade. Para ilustrar, sem estender muito, pois não é objeto deste trabalho, o Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET, 1997.) propôs um projeto estratégico transversal “Evolução transdisciplinar da Universidade”, elaborado em colaboração com a UNESCO. Tal projeto foi apresentado como documento de trabalho para o congresso internacional “Que Universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade”, realizado em Locarno, Suíça, de 30 de abril a 02 de maio de 1997.


O objetivo do projeto CIRET-UNESCO a curto prazo é fazer com que a Universidade evolua para a sua missão, hoje esquecida, de estudo do universal, em nosso mundo caracterizado por uma complexidade que cresce de maneira incessante. O pensamento estilhaçado é incompatível com a busca da paz na Terra. A idéia central do projeto é a de que há uma relação direta e não contornável entre paz e transdisciplinaridade (CIRET, 1997).


O documento define: “a transdisciplinaridade, como o prefixo "trans" o indica, diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento.”; e estabelece “os três pilares da transdisciplinaridade: os níveis de Realidade, a lógica do terceiro termo incluso e a complexidade, que determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar. Assim é essa “força”, que emerge no campo da psicologia e que se desenvolve extramuros. Da ciência à sapiência, essa transposição “significava um aperfeiçoamento tão óbvio que foi imediatamente aceita” (SUTICH apud WEIL, 1978, p. 27).


Abordagem Integrativa Transpessoal



Dentre as contribuições da abordagem transpessoal, Vera Saldanha (2006) sistematizou o que ela reconhece como os principais conceitos da Psicologia Transpessoal, apresentando-os de forma estruturada para facilitar a sua aplicação também na educação, na saúde e em organizações. Ela descreve um corpo teórico coerente e lógico, construído a partir da sua formação e aplicação prática da Psicologia Transpessoal na educação e na saúde, apoiada em uma extensa pesquisa bibliográfica. A autora denominou a elaboração desse conhecimento em Psicologia como “Abordagem Integrativa Transpessoal” (p. 95).
Na organização dos conteúdos em Psicologia Transpessoal, Saldanha identificou dois aspectos básicos: o estrutural e o dinâmico. O aspecto estrutural é constituído por cinco elementos que formam o que ela denominou de “Corpo Teórico da Psicologia Transpessoal: conceito de unidade, conceito de vida, conceito de ego, estados de consciência e cartografia da consciência” (op. cit., p. 107). O aspecto dinâmico é formado por dois elementos: o eixo experiencial e o eixo evolutivo (ibid., p. 108).
Os elementos teóricos estão presentes em todo momento, assim como “todos os membros do corpo formam um só corpo”. Como um corpo é dinâmico, a abordagem integrativa vê a pessoa que “se move” na história (eixo experiencial), e cresce “em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (no eixo evolutivo). Juntos, eixo experiencial e eixo evolutivo, constituem o aspecto dinâmico.
Nesse dinâmico caminhar o seu caminho (eixo experiencial), o ser humano busca instintivamente, naturalmente, uma integração entre razão, emoção, intuição e sensação, que Vera Saldanha resume na sigla REIS como artifício mnemônico, isto é, para facilitar a apreensão do conceito na memória. Convém esclarecer que a autora propôs essas quatro funções psíquicas, quatro elementos de expressão humana, baseando-se no modelo junguiano de tipologia.


Segundo Carl Gustav Jung, o tipo psicológico do indivíduo determina sua maneira de se relacionar com o mundo interior e exterior, pessoas e coisas, o que ocorre por meio de uma atitude de extroversão ou introversão relacionada às funções do pensamento, sentimento, sensação e intuição” (SALDANHA, 2008, p. 185).


A proposta é, então, facilitar a integração entre razão, emoção, intuição e sensação (REIS) na história da pessoa, isto é, no seu dia-a-dia; estimular o “eixo experiencial” para promover movimento no “eixo evolutivo”. Na prática vemos emergir uma consciência mais desperta, a sua consciência de si mesmo, que coincide com o desenvolvimento do ser humano em plenitude.
No dia-a-dia das pessoas comuns, é habitual que haja uma “soberania” de uma dessas funções sobre as outras: às vezes a razão se sobrepõe à intuição; outras a emoção se sobrepõe à razão… Postula-se a integração, ou seja, que exista a mesma “dignidade” entre as funções psíquicas. Para isso, usa-se recursos já consagrados noutras práticas tanto psicológicas quanto pedagógicas: intervenção verbal, imaginação ativa (da psicologia junguiana), reorganização simbólica, dinâmica interativa e recursos auxiliares ou adjuntos...
É óbvio, mas não custa lembrar, que a aplicação desse procedimento exige e leva à prática, ou seja, é necessário que o próprio terapeuta (aquele que acompanha o caminhante no caminho) tenha vivenciado essa integração das funções psíquicas e os diferentes estados de consciência que ela possibilita, que os tenha reconhecido em si. Que o acompanhador seja coerente com sua proposta aos acompanhados!


O acompanhamento espiritual



Como processo do desenvolvimento humano em plenitude, revelador e transformador da vida pessoal, o acompanhamento espiritual é um fenômeno antropológico, descrito em muitas tradições há muito tempo e com muitos nomes, normalmente vinculado às religiões reconhecidas. Aqui nos limitamos a um pouco do que se diz a partir da pregação de Jesus de Nazaré e se desenvolve até hoje. Esse fenômeno também é conhecido como direção espiritual, orientação espiritual, mas nós preferimos usar a expressão acompanhamento espiritual. Deve a sua duração no tempo ao fato de ser uma prática que


vem ao encontro de uma necessidade humana fundamental, aquela de construir a sua própria identidade seja a partir da imitação de modelos fortes que a fascinam, seja deixando-se guiar por um conselheiro experto, que ajude a individuar a própria meta e forneça os instrumentos necessários para orientar-se e não perder-se naquela viagem particular que é a busca da salvação própria.” (SAMPAIO COSTA, 2014, p. 5).


O acompanhamento espiritual “diz respeito a uma ajuda direta que se dá a alguém quanto ao seu relacionamento com Deus” (BARRY; CONNOLLY, 1987, p. 19). Está diretamente ligado “às experiências reais de relacionamento de alguém com Deus” (ibid., p. 21) e “se apoia na experiência, não em ideias, e especificamente na experiência religiosa, ou seja, em qualquer experiência do misterioso Outro a quem chamamos Deus” (ibid., p. 22). Bento XVI (2005) lembra que “ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (n. 1).
Convém distinguir da prática havida em alguns sistemas hierárquicos onde alguém recebia normas de conduta de outrem. Isso “sugere pessoas entediadas e vazias em busca de experiências ‘enriquecedoras’ e clérigos contemplativos hipnotizados pela bajulação do hout monde. Seu clima é carregado de indiscutível dominação machista” (BARRY; CONNOLLY, 1987, p. 23).


A “nova onda” do acompanhamento espiritual



Ulpiano Vázquez Moro (2006) diz que


tão real quanto o desaparecimento da imagem tradicional do padre ou orientador espiritual  é o aparecimento de um novo personagem que, mesmo no caso que tenha herdado o nome do desaparecido, não corresponde mais exatamente nem à imagem nem à função ou funções que ele tinha (p. 25).


Moro percebe um “novo tipo” de acompanhante “como alguém, homem ou mulher, que tem (ou a quem foi dado) o carisma de ajudar a discernir a experiência espiritual de outra pessoa” (p. 26). Ele também aponta algumas características do que não é o acompanhante espiritual: não é mestre nem guru; não é superior; não é confessor; não é moralista ou conselheiro; não é terapeuta (pp. 31-32). Em seguida, aponta funções desse “novo” acompanhante: teográfica e mistagógica, sugerindo que atue como mediador em ambas as funções. Da função teográfica, o autor ilustra lembrando que qualquer experiência humana é situada ou “situável” numa topografia física e psíquica. Assim, reconhecendo na história da própria pessoa um certo sentido do que já percorreu, o acompanhante poderá ajudá-la a perceber uma orientação original, total, totalizante e integrativa (pp. 34-36). Da função mistagógica, Moro privilegia a escuta “da pessoa que fala de si mesma, de Deus e da relação entre ambos” (p. 37).


O fato de que, como foi dito, essa relação seja bidirecional, isto é, que não se trate somente da relação e da experiência do orientando com Deus mas também da relação e da experiência de Deus com o orientando, faz com que essa atitude de escuta atenta e respeitosa da parte do orientador espiritual não esteja unicamente determinada por uma espécie qualquer de prudência estratégica ou de reserva clínica. Ela é uma atitude de fé na ação de Deus, Criador e Senhor, que se revela através das palavras do orientando (op. cit., p. 37).


William Barry e William Connolly (1987), lembrando que “fazemos parte de uma transformação cultural maciça”, denunciam “a perda de credibilidade de instituições, funções, costumes e teorias estabelecidas” (p. 26). Eles reconhecem que o acompanhamento espiritual é necessidade natural humana e que essa perda de credibilidade do “instituído” paradoxalmente aumenta a demanda do “espiritual”. Por falta de oferta, essa demanda tem recaído sobre a psicoterapia e aconselhamentos e outras formas assemelhadas (Cf. p. 28).
Margaret Guenther (1992) compara o “novo acompanhante espiritual” com o hospedeiro ou anfitrião, que se prepara, recebe, acolhe, dá pouso seguro e nutre… E ao “parteiro da alma”. O parteiro ou parteira faz o seu trabalho com, e não para, a pessoa que dá à luz, e que, no caso do acompanhamento espiritual, não converge à anatomia (Cf. p. 3). Henri Nouwen (2008) propõe um “ministério criativo” sugerindo uma articulação com o processo “ensino-aprendizagem”. Nesse “serviço criativo” o professor é (ou deveria ser) aquele que acompanha espiritualmente alguém. Ele afirma que “o aprendizado tem o objetivo de guiar-nos em direção a uma percepção libertadora a respeito da condição do nosso mundo” (p. 39), e confronta com a atuação de Jesus, “professor no mais completo sentido da palavra”, que “não se prendeu às suas prerrogativas, mas se tornou um dos muitos que precisavam aprender” (p. 43) com a única intenção de “dar-nos a conhecer o Pai”.
Esses e outros autores concordam com um ponto que diferencia esta de outras formas de ajudar às almas, como as relações psicológicas, por exemplo: não é porque se fala de Deus que se trata de uma atividade espiritual, mas “o encontro é espiritual quando Deus acontece” (BARRY; CONNOLLY, 1987, p. 38).


Desenvolvimento humano integral a partir do acompanhamento espiritual



Papa Francisco reconhece nos sinais dos tempos a necessidade natural humana, e anima a “tornar presente a fragrância da presença de Jesus”, colocando à Igreja o dever de iniciar os seus membros na “arte do acompanhamento”:


Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e, simultaneamente, obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para contemplar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias. Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem tornar presente a fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta “arte do acompanhamento”, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã (FRANCISCO, 2013, n. 169).


Para ajudar às almas, a partir de um ser que ama, sofre, pensa, compreende, Papa Francisco (2016) institui o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral a fim de que “em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do Homem à luz do Evangelho”.


Conclusão

Pequena reflexão ou o diálogo entre ciência e religião



O diálogo entre ciência e religião é condição fundamental para a entender e ajudar as almas. “A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (JOÃO PAULO II, 1998). Fé sem razão é ilusão, razão sem fé é ilusionismo. Este momento da humanidade, com comunicação intensa, relações virtuais online, é propício para a materialização do impalpável. Conceitos que há pouco eram inadmissíveis, já são óbvios. Podemos dimensionar o adimensional: a Internet é um exemplo… O momento é propício!
“A ideia de um perene e inevitável conflito entre ciência e religião foi um mito histórico criado no final do século XIX” (MOREIRA-ALMEIDA; LUCCHETTI, 2016). Segundo os autores, as relações entre religião/espiritualidade e ciência sempre foram “complexas, interessantes e frequentemente positivas” (ibid.); mesmo que por vezes houvesse tensões e conflitos. “Por exemplo, a ampla maioria dos fundadores da ciência moderna (Bacon, Descartes, Galileu, Kepler Newton, Boyle) eram não apenas religiosos, como tinham motivações religiosas para promover a revolução científica e conduzirem suas pesquisas” (ibid.). O mito da relação conflitante foi criado coincidentemente no período em que surge a psicologia clínica, e perdura até final do século XX quando, então, as relações entre espiritualidade e ciência passam a ter “crescente interesse acadêmico e do público em geral”: “houve um grande crescimento de investigações nessa área” (ibid.).


Nas últimas décadas, evidências científicas vêm corroborando com a influência da R/E [religião/espiritualidade] em desfechos em saúde em geral. Em um levantamento bibliométrico recente do banco de artigos Pubmed, foram encontrados mais de 30 mil artigos publicados com os unitermos (spiritual* ou religio*) nos últimos 15 anos, sendo estimado que pelo menos 7 artigos novos sobre a temática são publicados por dia. Da mesma forma, Koenig (5) encontrou um grande crescimento nas publicações de artigos originais em R/E, sendo que apenas na última década (2000 a 2010) foram publicados mais artigos que antes do ano 2000 (ibid.).


Sobre a temática religião/espiritualidade (R/E), é bom evidenciar que
o Brasil tem se destacado no cenário internacional da pesquisa em R/E. Enquanto o país está em 13º lugar no ranking internacional de publicações na base Scopus (www.scimagojrcom), se destaca em 5º lugar nos artigos em medicina, psicologia e enfermagem com a temática R/E nos últimos cinco anos. (...) A medicina aparece com mais artigos, 139, seguida da enfermagem, 85, e psicologia, 44. As universidades com mais publicações foram USP, UFJF, Unifesp, UFSC, Unifenas, UFRGS, UFPB e UFC. Este interesse acadêmico brasileiro em R/E se reflete também no impacto de publicações na área. Um suplemento especial em espiritualidade e saúde publicado pela Revista de Psiquiatria Clínica em 2007 (26) já foi acessado mais de 330 mil vezes no SciELO (biblioteca eletrônica de revistas científicas), sendo o fascículo mais acessado dentre os publicados nos últimos dez anos (MOREIRA-ALMEIDA; LUCCHETTI, 2016).


É importante e louvável que se tenha aumentado o interesse pela espiritualidade na academia, e é bom que se discuta “o que seria essa tal de espiritualidade”. Mas, enquanto isso, não podemos deixar as almas penando num mundo atribulado à imagem do seriado de televisão The Walking Dead, pois “o desespero para sobreviver pode levá-los à beira da sanidade”.
Não é por acaso que neste hoje (2017) aumenta o interesse da academia pela espiritualidade. O momento é propício! Há bem pouco tempo as vidas dos nossos antepassados, e mesmo a de alguns de nós, era pautada por uma necessidade premente de sobrevivência, e todo trabalho era voltado para “colocar comida na mesa”.
Sem negar os bolsões de miséria e carestia que ainda existem, hoje mais da décima parte da humanidade possui conta no Facebook... Essa parcela “privilegiada” da humanidade dirige o seu trabalho para se suprir de “meios de transporte”, além do automóvel, a conexão “banda larga”, “Wi-Fi”, provedores de acesso, etc., (leia-se relacionamento). A comida na mesa já não pesa tanto no esforço familiar. Esse fenômeno aumenta a diferença de potencial gerando corrente, ou seja, movimento. Esse movimento gerado aumenta a inquietação e a tristeza, como frutos da necessidade de viver no mundo conformando-se aos outros. Já lembrava Francisco à Filotéia que “a inquietação é o maior mal da alma, com exceção do pecado”.
Os mesmos meios de relacionamento objeto do desejo, a mass media, são agentes da popularização daquela decepção profunda dos sobreviventes da hecatombe da primeira metade do século XX, não mais somente com a “ciência” mas com todo o panorama mundial, principalmente com certas condutas não tão humanas noticiadas aos milhares, nos cinco continentes. Tal decepção provoca o questionamento que “cai na rede”. O questionamento é saudável enquanto move o humanóide ao humano. O momento é propício, então, à consideração do humano; do verdadeiramente humano, inteiro, integrado, pleno.
Para chegar à inteireza, à integridade, à plenitude de ser humano há que se caminhar pelo caminho do autoconhecimento ou auto-reconhecimento. Navegar por mares nunca dantes navegados… e edificar Novo Reino, que tanto sublimaram… (Cf. Luís Vaz de Camões, Canto I (Parte I)). À inteireza e à integridade a psicologia pode ajudar, à plenitude de ser humano o acompanhamento espiritual é o fenômeno por excelência!
O acompanhamento espiritual acontece na história de duas pessoas que se encontram, num tempo e num espaço definidos onde espera-se reconhecer “Deus que acontece”. Pessoas que são, cada uma e ambas, um ser inteiro: espírito, alma e corpo (Cf. 1Ts 5,23). Encontro que é fenômeno humano necessário, naturalmente necessário, porque somos seres em relação tanto nos aspectos biológicos (corpo) quanto nos aspectos psicológicos (alma). Seres predestinados a reencontrar o Amor que acontece na história, no dia-a-dia, na nossa humanidade. Por isso, mesmo no epicentro de uma “transformação cultural maciça”, marcada pela “perda de credibilidade de instituições, funções, costumes e teorias estabelecidas”, reconhecemos que o acompanhamento espiritual é necessidade natural humana.
A contribuição da psicologia para o acompanhamento espiritual está diretamente ligada à compreensão do ser humano tanto de quem acompanha quanto de quem é acompanhado. Como ciência que estuda o comportamento e os processos mentais, atribui a si o estudo dos fenômenos psíquicos e já foi notoriamente reconhecida como parte da filosofia que trata da alma e das suas manifestações. Apesar da nossa ignorância sobre o que é o ser humano, sabemos que ele não é um punhado de carne pendurada num esqueleto, nem um feixe de músculos emaranhado de nervos; “um corpo sem o espírito é cadáver” (Cf. Tg 2,26)!
A visão holística da abordagem transpessoal, adequada a uma metodologia científica acreditada pela academia, predispõe e facilita o diálogo entre espiritualidade e ciência. A sistematização dos principais conceitos da Psicologia Transpessoal de forma estruturada, facilita a sua aplicação no acompanhamento espiritual atendendo às necessidade do “novo” acompanhante. Especialmente, a proposta de procedimento, que favorece a emergência de uma consciência mais desperta, o desenvolvimento do ser humano em plenitude, está disponível e ao alcance de quem queira se aprimorar no desenvolvimento da “nova onda” do acompanhamento espiritual.
E, não evitemos a nós mesmos qualquer empenho à “arte do acompanhamento” para ajudar qualquer alma, um ser que ama, sofre, pensa, compreende no seu encontro pessoal com Deus, posto que “em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do Homem à luz do Evangelho” (FRANCISCO, 2016).


Bibliografia



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FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia Núcleo de Extensão e Especialização / Departamento de Teologia Especialização em Espiritualidade Cristã e Orientação Espiritual (ECOE II) TCC - Trabalho de Conclusão de Curso Orientador: Prof. Dr. Fernando Genaro Aluno: Sergio Vieira Holtz Filho Data: 30.06.2017

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