A ORIENTAÇÃO ESPIRITUAL NA VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA

Por Ir. Flávia Matias de Queiroz, RIC


Introdução


Nosso tempo caracteriza-se por um período histórico, em que as pessoas estão mergulhadas em um ativismo, em uma perda de sentido da vida e uma cultura líquida que se adapta a qualquer ideologia. Constata-se, com isso, a urgência de se voltar às fontes de nossa Espiritualidade Cristã para dar significado à nossa opção por Cristo e seu estilo de vida.

Mesmo entre os religiosos consagrados, observa-se um distanciamento da busca da orientação espiritual (OE), instrumento utilizado pela Igreja há séculos. Nesse contexto, este artigo tem o propósito de incentivar a reflexão sobre o tema, a partir de questionamentos quanto às razões que levam os consagrados e consagradas a abandonarem a prática da OE e, por consequência, despertar as motivações para o retorno a tão necessária prática.

Para identificar as causas desse quadro, parte-se da hipótese da diminuição de orientadores habilitados e disponíveis, bem como da dificuldade de uma consciência mais relaxada, pressupondo-se que, uma vez feita a opção pela Vida Religiosa, por meio dos votos definitivos, não há mais necessidade de orientação espiritual.

Nossa pesquisa não tem a pretensão de apresentar uma solução ou uma fórmula pronta para o problema da OE na contemporaneidade, mas evidenciar o valor dessa prática espiritual, principalmente em tempos em que os paradigmas cristãos são postos à prova, necessitando de testemunho de vida e amizade com Jesus, para a validade da opção por viver a Vida Religiosa Consagrada. A concretização da nossa vocação se dá a partir da missão que recebemos de Cristo e pelo acolhimento dos apelos que recebemos da Igreja, de Institutos e Congregações.

Através de uma pesquisa bibliográfica e do método científico analítico, procuramos entender a prática religiosa da OE, ao longo da história da Igreja, para propor uma modesta síntese como incentivo para outros estudos que, de forma mais detalhada, possam investigar essa matéria espiritual de grande importância para o progresso do conhecimento e no seguimento de Jesus de Nazaré: o Divino Instrutor de nossa vida cristã.

1. Orientação Espiritual: o que é? Qual sua importância para a Vida Religiosa Consagrada? 


A Orientação Espiritual é uma arte bela, delicada e grandiosa, revestida de sacralidade. Assim, era caracterizada pelo Papa Gregório Magno como “a arte de guiar as almas. É a arte das artes” (GREGÓRIO MAGNO. Regula pastoralis, I, 1; PL: 77, 14, apud JOÃO PAULO II, 1979). Em consulta à edição brasileira do Dicionário de Espiritualidade, não é possível encontrar os verbetes “acompanhamento”, “direção” ou “orientação” espiritual. No entanto, a definição de um termo relacionado “padre espiritual” e, em torno dele, se aborda a questão da OE, definida, em síntese, como “o discernimento da vontade de Deus em relação aos homens” (MERCATALI, 1993, p. 878).

A direção espiritual é descrita por Barry e Connolly como: 

a ajuda dada por um cristão a outro, ajuda essa que capacita este outro a prestar atenção à comunicação pessoal de Deus com ele, a responder a esse Deus pessoalmente comunicante, a aumentar a sua intimidade com ele e a viver as consequências desse relacionamento (BARRY; CONNOLLY, 1987, p. 22.)

Com a evolução dos estudos teológicos e com a adaptação à realidade contemporânea, vamos assimilar a nomenclatura Orientação Espiritual e não Direção Espiritual. O ponto alto da OE é a experiência espiritual da pessoa orientada, que se revela, especialmente, na oração. Isso não significa deixar de lado outros aspectos da vida, como os afetivos e psicológicos. Se se desconsidera esses aspectos, está fadada a ser mais prejudicial que útil à pessoa. A OE possibilita o estabelecimento de relações profundas; entretanto, cada um tem sua forma de relacionar-se com Deus na sua vida cotidiana e esta deve ser respeitada, acompanhada e discernida.

Há muitas motivações ao se pedir uma orientação espiritual, porém, nem toda orientação pode ser considerada OE. Existem, contudo, elementos específicos neste processo que, eventualmente, podem ser confundidos com outras práticas. É importante diferenciá-lo da assistência pastoral, assim como do aconselhamento. Sobre esse papel, Powell e Brady (2010) comentam que algumas vezes “[...] Sentimos uma estranha obrigação de aconselhá-los e de corroborar nossos conselhos com alguns capítulos de nossas autobiografias” (POWELL; BRADY, 2010, p. 89-90). Restringir-se a esse ponto, corresponde a impor limites ao processo de orientação que, na realidade, está intimamente ligado às experiências pessoais de relacionamento com Deus.

Esses tipos de ajuda continuam sendo muito válidos ainda hoje. Contudo, sejam quais forem as situações e motivações em que a pessoa pede uma orientação, pode-se propor a ela que as coloquem diante de Deus. Desse modo, o orientador ajuda a transformar o aconselhamento em uma experiência de aproximação e engajamento na relação pessoal com Deus, visando não somente a entendê-lo, mas levando a perceber, de forma mais clara, como Ele a conduz.

Quem busca OE precisa ter clareza de que seu objetivo e conteúdo são o encontro pessoal com Deus através da oração e como esse encontro afeta toda a pessoa. Um aspecto importante é a necessidade de explicitar o que é experiência espiritual, uma vez que a OE está baseada nela (cf. Vázquez,2006, p. 28). O autor a descreve como a experiência pessoal de Deus. Assim, quando alguém busca a OE será porque toma consciência da ação imediata de Deus em sua vida; a experiência desassossega o ser humano e este percebe a forma como está sendo “movido” e “afetado” por Deus.

Com isso, o orientando sente necessidade de buscar uma ajuda para caminhar nessa nova situação. Sem essa procura suscitada interiormente pela experiência de Deus, a busca de OE está fadada ao fracasso. Por um lado, ocorre que a procura pela orientação espiritual só tem sentido quando aparece como um meio para atingir algo ou alguém que não começa nem acaba na orientação. Por outro lado, quem deseja recebê-la deve se dispor a fazer sua oração diária e se encontrar, periodicamente, com seu orientador.

Compreendendo isso, o orientador espiritual precisa ter a consciência de que quem dirige a pessoa é o Espírito de Deus. E ele se “comunica diretamente com sua criatura” (EE 5,6). Ao orientador cabe apenas a missão de ser “diácono” do Espírito, não se antecipar a Ele. Porque desconhece o caminho, faz perguntas, fica à escuta, prestando atenção ao que Ele está falando e agindo na alma do orientando. O ministério do orientador consiste em incentivar e provocar o crescimento do orientando na sua relação com Deus.  

Qual a necessidade de OE hoje? A comunicação com Deus se dá de muitos modos: através de acontecimentos, de realidades históricas e pessoais. Por isso, o orientando precisa de alguém familiarizado com a linguagem do Espírito para ajudá-lo a discernir o caminho de Deus na sua vida, a ler espiritualmente os diversos acontecimentos de sua história e fazer com ele a leitura da sua teografia. O orientador, sendo um humilde companheiro de caminhada, contribui com o crescimento do orientando na sua relação com Deus e na capacidade de discernimento.  

Recorrer a um orientador é ato de humildade, pois quando se partilha a experiência espiritual com alguém mais habilitado nesta área, obtém-se mais clareza sobre o que se passa dentro de si. Se a vida espiritual é uma caminhada, precisa-se de companhia e de orientação neste percurso. Necessita-se de um irmão ou de uma irmã, de um companheiro ou companheira que, por meio do diálogo, dedique-se a ajudar o orientando a buscar a vontade de Deus a seu respeito.

A Igreja, no documento Vita Consecrata, n. 93, ensina que “a vida espiritual deve ocupar o primeiro lugar no programa das famílias de vida consagrada [...]”. Como se vê, trata-se de fundamentar toda a vida sobre a espiritualidade, isto é, viver segundo o Espírito Santo. Sendo os religiosos chamados a seguir Jesus, é condição imprescindível uma vida de maior intimidade com Ele, e isto se dá essencialmente pela oração. Sem uma adequada vida espiritual, não se pode responder aos desafios atuais e futuros.

Vale ressaltar que cultivar um relacionamento pessoal com Deus não significa dizer que tudo já esteja tão claro e óbvio quanto à vontade divina a respeito de cada consagrado. Por isso, a orientação espiritual é uma contribuição indispensável para o crescimento espiritual dos religiosos e corresponde a uma prática antiga, presente na vida religiosa desde sua origem.

2. A Orientação Espiritual na história da Vida Religiosa Consagrada


Historicamente, a prática da orientação espiritual encontra seus antecedentes na Antiguidade, com os conselhos e reflexões de pensadores e filósofos que trouxeram importantes contribuições ao desenvolvimento da cultura ocidental. Com frequência, eles eram consultados por pessoas que acreditavam em sua sabedoria e desejavam compreender melhor os fenômenos próprios da vida humana. Na certeza de estar diante de verdadeiros mestres, era natural que buscassem conselhos antes de tomar decisões importantes, na expectativa de fazer escolhas acertadas.  

No campo filosófico, há notáveis exemplos da pedagogia adotada pelos mestres na orientação aos seus discípulos, uma vez que a construção do conhecimento se dava a partir da relação entre ambos. Para adentrar nessa área, o indivíduo necessitava da companhia de um mestre, um guia capaz de oferecer orientações seguras e, ao mesmo tempo, com habilidade para instigar o desejo de aprender. Seu papel era, portanto, o de mediador que participa não somente da aprendizagem, mas que contribui para a elevação da alma. (cf. COSTA, 2014, p. 10).

Já no âmbito do cristianismo, a direção espiritual desenvolveu-se, inicialmente, entre os padres do deserto e, em seguida, nos mosteiros, onde o abade era responsável por orientar seus monges na vida de oração, que integrava a essência da vida monástica, como descreve Sciadini (2006, p. 57). Nesse caminho, a perfeição se apresentava como meta a ser alcançada, envolvendo a disposição pessoal, a coragem de olhar dentro de si, identificar seus vícios e virtudes e de nomear suas paixões, trazendo-as para a pauta do diálogo.

No monacato primitivo, o acompanhamento espiritual era bastante vivenciado e seu exercício se dava a partir da intuição, fruto da experiência do conhecimento de si mesmo, da vivência e superação de inúmeras e longas lutas espirituais. Ao autoconhecimento, sobrepõe-se, ainda, um outro aspecto, muito mais abrangente, conforme a ideia, apresentada por Grün:

[...] a meta do acompanhamento espiritual é conduzir o outro à contemplação e ao conhecimento de Cristo. Tal conhecimento, porém, nele, refere-se ao conhecimento de Deus Trino, o tornar-se um com o Deus Trino, no fundo da alma, alma essa livre das paixões, assim como de todos os pensamentos e emoções (GRÜN, 2013, p. 22-23). 

Era normal e até um dever do monge ter um pai espiritual. Essa seria a expressão mais adequada para a época e era fundamentada na ideia de que o pai gera vida a outro, inspirada na paternidade de Deus. A relação entre eles era de mestre e discípulo. Do mestre, esperava-se a disponibilidade para escutar. A relação privilegiada com o divino pedia coerência dos ensinamentos com a própria vida, ou seja, ensinar a partir do que já experienciou. Em contrapartida, do discípulo era exigida a abertura de coração, a confissão dos pensamentos e a obediência absoluta a esse pai (cf. GRÜN, 2013, p. 14).

O pai espiritual era capaz de perceber o coração do filho espiritual e perscrutá-lo até o mais profundo. Por isso, é com certa naturalidade que ele pressentia o exercício mais adequado para aplicar a cada pessoa. Os exercícios espirituais eram bem concretos, ligados à vida, aos sentimentos, às paixões, às necessidades; a partir daí, acontecia o encontro com Deus. Compreendia-se que, se a pessoa não era capaz de persistir no caminho exterior, também não o seria no caminho interior.

A orientação espiritual não era uma conversa teológica sobre conceitos e teorias sobre Deus, mas uma conversa sobre as motivações da alma, sobre as verdades do coração e, como consequência, um caminho para reconhecer e amar o verdadeiro Deus. Apesar de não ter como objetivo principal a orientação psicológica, o pai espiritual utilizava também este recurso, uma vez que o conhecimento psicológico da natureza humana ajuda a esclarecer e a identificar o que provém dela, de sua psique, e o que é ação de Deus. Nesse processo, o orientador analisava os pensamentos e oferecia meios de lidar com eles, tendo em vista inclusive os bloqueios que interferem na relação com Deus e devem ser sanados diante dele (cf. GRÜN, 2013, p. 66).

Na orientação, o pai espiritual se recusava a dar receitas prontas, e era hábil em fazer a pergunta certa, na hora certa, para a pessoa certa. Em muitos momentos, usava a pedagogia do silêncio ou o retardamento da resposta por entender que o silêncio fala por si. Essa valorização se deve à certeza de que o silêncio obriga o discípulo a adentrar sua realidade mais profunda (cf. GRÜN, 2013, p. 64-67).

A sabedoria dos padres espirituais, na arte de orientar as pessoas, incluía a capacidade de identificar as intenções implícitas no diálogo. Dessa forma, era possível perceber se o colóquio realizado entre eles realmente tratava de coisas espirituais e celestiais ou era uma conversa para se desviar de si mesmo. Havia o propósito de levar o discípulo a superar as próprias fantasias, forçando-o a falar de suas paixões, as quais o separavam de Deus. Assim, o ajudava a encontrar e a falar de sua verdade mais profunda. Esse era um modo de auxiliar a pessoa a se confrontar consigo e com a vontade de Deus e por ela se decidir pessoalmente (cf. GRÜN, 2013, p. 65).

Os padres do deserto são, portanto, verdadeiros mestres de OE. Deixaram um legado que nos foi transmitido com a vida, com suas próprias experiências, e depois partilhado como um tesouro precioso. Eis um grande ensinamento: a capacidade de conhecer os corações e identificar o real problema daqueles que os buscavam, além de oferecer o exercício exato que ajudaria a pessoa a encontrar o caminho na busca de Deus e de si mesmo (cf. GRÜN, 2013, p. 7). Com essa consideração, não se pretende dizer que se deve imitá-los hoje, mas que é possível adaptar para os dias atuais o que praticavam naquela época, e aprender com eles a arte de conhecer os corações e atualizar o exercício espiritual e a oferecer a orientação correta para as situações de cada pessoa.

Ao longo do tempo, foi desaparecendo a imagem de um diretor espiritual, tal como a figura presente nos antigos conventos e seminários, que exercia a função de confessor, conselheiro ou mesmo o que era procurado para solucionar situações de crise. Assim, podia-se descrever o seu perfil: normalmente era sacerdote, sabia o que fazer, quando e como fazê-lo, transmitia seu conhecimento ao dirigido, agia segundo seus critérios pessoais, tinha a função de comandar, dirigir, determinar o que o dirigido tinha que fazer; a esse cabia apenas obedecer. Era dono da verdade, e faltava-lhe o respeito à individualidade e à liberdade pessoal (cf. MARTÍNEZ, 1998, p. 37).

Se assim se caracterizava a figura do diretor espiritual, até meados do século XX, o perfil de religioso manteve características de submissão, em uma relação de total dependência dos superiores, com absoluta resignação e resquícios de obediência cega. A partir das Regras da Congregação, tudo já estava previsto, determinado, e não havia muito espaço para o ser individual com suas peculiaridades.

Na vida espiritual dava-se mais ênfase à oração de devoção, à piedade, à execução do rito, à estrutura formalista do que à ação livre do Espírito, com sua leveza e fluidez. Nesse caso, havia pouca necessidade de uma orientação que visasse a discernir a vontade de Deus para a pessoa. A espiritualidade estava uniformizada, tudo estava tão determinado e tão evidente que não fazia sentido um acompanhamento que ajudasse o orientando no processo de discernimento. Para esse tipo de espiritualidade e de vida religiosa, a figura do diretor espiritual se adequava ao contexto.

A Orientação Espiritual teve seus momentos de grande destaque, mas também de decadência, tanto por parte das pessoas como dos orientadores espirituais. Sciadini afirma que:

a descrença nessa prática surgiu na metade do século passado, quando houve uma diminuição na procura pela figura do diretor espiritual. Antes desse período considerava-se sinal de profunda vivência espiritual e conferia popularidade ter um diretor espiritual. Quanto mais importante era o diretor espiritual, mais projeção tinha o dirigido. O mesmo se dava entre mestre e discípulos (SCIADINI, 2006, p. 74).

Existem, hoje, novas configurações para a OE, de modo que o termo “pai espiritual” ou diretor espiritual cede lugar à expressão acompanhante espiritual – aquele ou aquela que está ao lado da pessoa acompanhada – ou “orientador espiritual”.

Vázquez (2001) explica, de maneira clara e objetiva, o sentido do termo “orientação”, “um fenômeno pelo qual uma pessoa se localiza, se situa ou se posiciona espaço-temporalmente em referência a um ponto determinado”. Ele menciona a prática milenar de tomar como referência o sol nascente, ou seja, o Oriente para se situar no espaço e no tempo. Essa era a forma mais usada por povos antigos para localizar um ponto específico e chegar ao lugar desejado, como também para identificar o período transcorrido ao longo do dia. Logo, ao falar em orientação espiritual, trata-se de procurar o caminho, encontrar a direção que dá sentido ao percurso, prosseguir no rumo certo.

A missão do orientador espiritual é a de “facilitar” e incentivar o crescimento da relação da pessoa orientada com Deus, ajudando-a a perceber a ação de Deus em sua vida e discernindo a sua vontade. Da conformidade com a vontade de Deus dependem o progresso espiritual e a santidade da pessoa.

Tendo descrito brevemente as características do orientador espiritual que existia na Igreja, pode-se perguntar: será que hoje existem pessoas que se dispõem a assumir esse ministério de modo novo? Para tempos novos, surgem, espontaneamente, novos perfis de orientadores espirituais. Na Companhia de Jesus, por exemplo, com os “Exercícios Espirituais personalizados”, brota uma renovação da OE, em que o orientando partilha sua caminhada de encontro com Deus. Tal prática vai sendo vivida em outras famílias religiosas e para além delas, como nos cursos oferecidos pelo Centro de Estudos Teológicos e de Espiritualidade (CETESP) e nas Comunidades de Vida Cristã (CVX). A pessoa faz a experiência de encontro com Deus e sente necessidade de partilhá-la com alguém, “homem ou mulher, que tem o carisma de ajudar a discernir a experiência espiritual de outras pessoas” (VÁZQUEZ, 2006, p. 27). Alguém que se tornou “diácono do Espírito”, “amigo do Esposo”, e não necessariamente é um sacerdote.

Sendo assim, compreende-se a expressão de Barry e Connolly ao afirmarem que “a direção espiritual cheira a um arcaico sistema social e religioso hierárquico no qual alguém podia receber normas detalhadas de vida” (BARRY; CONNOLLY, 1987, p. 23). Em nossa cultura ocidental contemporânea, vale ressaltar que a expressão “direção espiritual” evoca, implicitamente, um espiritualismo e um autoritarismo que a teologia e a psicologia sadias repudiam. Significa dizer, com isso, que os novos tempos não comportam mais tal perfil de orientadores espirituais.

3. A crise contemporânea da Orientação Espiritual na Vida Religiosa Consagrada


Cada época é forjada por mudanças significativas que afetam a pessoa em suas múltiplas dimensões, inclusive na vivência da espiritualidade. Com o avanço das ciências, abrem-se novas percepções do mundo, da pessoa, da vida, de Deus. O que estava firme agora tropeça. Os critérios e as aspirações da sociedade de consumo, determinada por contravalores evangélicos como o materialismo, o agnosticismo, o individualismo e a negação de Deus, como afirma Martínez (cf. 1998, p. 23), acabaram afogando muitos dos ideais humanos, repercutindo sobre os valores transcendentais.

Contudo, a sede de espiritualidade não morreu no homem contemporâneo, no qual se nota uma busca crescente, com particular interesse pela espiritualidade oriental e por suas técnicas.

Há décadas surgiram novos modelos de orientadores vindos do Oriente para o Ocidente, como mestres budistas, hinduístas, zen. Muitas pessoas partiram em direção aos mosteiros do Tibete ou aos templos da Índia, à procura desses “gurus”. Na contemporaneidade, também, houve uma grande ascensão da psicanálise e de várias correntes psicológicas que parecem oferecer respostas aos anseios dos indivíduos. Há uma sede e uma procura destes “pais ou mães”; as pessoas continuam buscando “gurus”, “mestres”, “orientadores”, “acompanhantes espirituais” que os auxiliem em suas buscas.

Diante de tantos desafios na pós-modernidade, percebe-se que a crise afeta, inevitavelmente, a vida religiosa e atinge sua estrutura, seus valores e objetivos, incidindo sobre princípios e critérios desse estado de vida. Surgem questionamentos relacionados às formas de oração, seja pessoal ou comunitária, aparecem perturbações, tensão interior, desorientação e inquietação (cf. MARTÍNEZ, 1998, p. 21).

Pode-se dizer, portanto, que há também na vida religiosa e na Igreja uma crise de vida espiritual. Há um enfraquecimento da mística em religiosos e religiosas que têm perdido o sabor do céu, das coisas do alto. Constata-se um ativismo demasiado, o qual faz perder de vista a dimensão preciosa da relação com Deus a que foram chamados. Por isso, foram descartando a necessidade de compartilhar sua vida espiritual.

A oração é atingida por um vazio que acarreta desilusão espiritual e esfriamento nas motivações que animavam a vida interior. Já não há mais vida de oração, nem experiência de Deus, sem as quais se torna impossível receber orientação espiritual. Restou, para alguns, a opção de buscar água em cisternas rachadas (cf. Jr 2,13), que disfarçam e encobrem a sua sede de infinito em tantas coisas superficiais. Substituíram a oração e, consequentemente, a OE por consultórios psicológicos, ioga, meditação oriental e outras técnicas.

Além disso, há uma rejeição ao estilo de OE que estava presente na Igreja, nos seminários e nos conventos, em outros períodos históricos, uma vez que, na atualidade, a vida consagrada apresenta diferentes características. Esse processo não foi acidental, e se deu a partir de novas percepções que ocasionaram mudanças na relação com os superiores, tornando-a, às vezes, conflituosa. A nova visão da vida humana potencializou na pessoa uma atitude de autossuficiência, do sentir-se maduro e adulto, considerando desnecessária a ajuda de alguém que o acompanhe.

Há religiosos que não sentem necessidade de orientação espiritual porque percebem que já estabeleceram um tipo de relacionamento com Deus e não seria mais necessário esse tipo de ajuda, conformando-se apenas com a celebração do sacramento da penitência. Outros buscam orientação em momentos de tomada de decisão para a profissão religiosa ou uma mudança na missão; outros sentem resistência e rejeitam esse auxílio. Há quem tenha tido uma experiência negativa com relação ao orientador e sentem dificuldade de abrir-se a outra pessoa; outros se tornaram autossuficientes, acomodados, ou têm medo de tirar a máscara, de enfrentar-se, por serem desconfiados e ativistas. Há outros que sentem a necessidade de crescer na sua relação com Deus e buscam OE; no entanto, muitos outros sentem muita dificuldade de encontrar orientadores competentes e/ou disponíveis.

Consequentemente, há uma crise também de orientadores espirituais. Impossível realizar esse ministério sem familiaridade com Deus. As pessoas sentem esse vazio, em muitos religiosos e sacerdotes. Encontram, às vezes, conselheiros que aprenderam, pela formação, a dar conselhos, mas que não captam a linguagem do Espírito na alma da pessoa, porque não sabem ouvir a voz da alma e não estão familiarizados com esta voz. Tornaram-se conselheiros, diretores, ou mesmo funcionários das coisas espirituais. Não basta ter o orientador espiritual, precisa que seja homem e mulher disponíveis e hábeis na vida do Espírito, que tenham compreendido que foram chamados a um ministério sagrado, que se tornaram “parteiros da alma” (GUENTHER, 2014, p. 3). Essa pessoa deve ser amiga de Deus, dócil à ação do seu Espírito, acreditar que o Criador se comunica diretamente com a sua criatura, familiarizada com o modo como Ele age no ser humano, além de ter perspicácia para reconhecer os artifícios do tentador. Deve ser alguém discreto, orante, atencioso, acolhedor, capaz de escutar, silenciar, fazer perguntas, saber esperar, respeitar o ritmo da pessoa, não ser manipulador e deixar que o Espírito de Deus conduza aquele que está sendo orientado. Esse tem sido o grande desafio para muitos religiosos que sentem dificuldade de encontrar orientadores espirituais com esse perfil.

4. Redescobrindo o valor da orientação espiritual na Vida Religiosa Consagrada


Como nos revela a História da Igreja, os religiosos foram chamados, essencialmente, para conviver mais de perto com o Senhor “para que ficassem com Ele” (Mc 3,13-15). Foram chamados a se configurar a Cristo por meio dos Conselhos Evangélicos, que caracterizam a essência da Vida Religiosa Consagrada. Quando se trata de caminhada espiritual, está implícita uma busca constante de Deus, que se dá, essencialmente, pela oração diária, pela escuta da Palavra e pelos sacramentos. Esses são meios pelos quais Deus se manifesta, conduz, inspira e anima seus filhos e filhas. A oração é um dom precioso ela nos desperta e nos leva a dar atenção especial Àquele que habita em nosso ser. Assim, possuídos por essa presença, podemos “ver Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”, como experimentou Inácio de Loyola. (Constituições da Companhia de Jesus, nº 288). A oração acompanha-nos em todo o ritmo da vida.

Com o intuito de oferecer ajuda aos que desejam fazer esse percurso, Nouwen, Christensen e Laird apresentam três práticas úteis para o relacionamento espiritual: a disciplina do coração, a disciplina da Bíblia e a disciplina da comunidade de fé (cf. NOUWEN; CHRISTENSEN; LAIRD, 2007, p. 16). Atualmente, percebe-se uma grande tentação em nossas relações: a tentação de não sermos autênticos no modo de manifestar o que realmente somos e sentimos. Os contatos virtuais nos provocam para sermos seletivos na manifestação do que somos, visando a obter a aceitação do outro. Isso pode ser refletido, também, quando nos colocamos diante de Deus, e parece ser impossível um relacionamento autêntico, como se ele nos pedisse um comportamento diferente do que realmente somos.

Na primeira prática sugerida, os autores afirmam que “a disciplina do coração nos conscientiza de que rezar não é apenas ouvir o coração, mas ouvir com o coração. A oração nos ajuda a estar na presença de Deus com tudo o que temos e somos: nossos medos e ansiedades [...]” (NOUWEN; CHRISTENSEN; LAIRD, 2007, p. 17).

A segunda atitude é a disciplina da Bíblia, isto é, voltarmos para Deus através da lectio divina (cf. NOUWEN; CHRISTENSEN; LAIRD, 2007, p. 18). Há vários séculos, os padres do deserto já haviam feito esta descoberta; o mais importante para eles não era ler a Bíblia, mas vivê-la. Aprendiam de cor as partes importantes das Escrituras para serem capazes de ruminá-la, o dia todo. Desse modo, eles nos lembram da importância primordial da Palavra de Deus na vida do cristão e da necessidade de nos deixar ser, constantemente, transformados por ela. Para os primeiros monges se aproximarem da Palavra é como ter contato com o fogo que queima, perturba, chama, contundentemente, à conversão. Para eles, não se trata de um método de oração; é um encontro místico. E este encontro, frequentemente, os torna temerosos, mas, ao mesmo tempo, os faz conscientes de suas exigências. A lectio divina é, portanto, uma escola de vida e de oração de ontem e de hoje (cf. VEILLEUX, 1995).

A terceira disciplina está relacionada com a vida de Cristo, celebrada na liturgia com o povo de Deus. A liturgia nos coloca no coração da Igreja e nos une aos irmãos e às irmãs espalhados por todo o globo que, seguindo o ritmo das horas e das celebrações, fazem uma rede contínua de diálogo com Deus. Diálogo que se intercala no Cristo que reza conosco e nas intenções que a Igreja apresenta ao Cristo que “é o mesmo ontem, hoje e sempre” (cf. Hb 13,8).

Como se viu, os três pontos apresentados por Nouwen, Christensen e Laird (cf. 2007, p. 16) esclarecem que a vida espiritual requer um compromisso diário com Deus, um tempo reservado para este encontro sagrado no qual “o Criador se encontra com a criatura”. A vida de oração exige disciplina e é preciso se esforçar para ser fiel ao tempo consagrado à oração pessoal. Os horários e locais de encontro com Deus devem ser priorizados, se desejarmos levar a sério a vida espiritual. Necessitamos voltar, regularmente, ao local daquele encontro que nos marcou, profundamente, fazendo memória da experiência vivida.

No cristianismo, a imagem de Deus é elaborada com base no pressuposto de que é possível estabelecer, com Ele, um vínculo pessoal, construir um relacionamento íntimo, voltado para a realização da vontade divina. Para identificar esses desígnios, é imprescindível contar com o dom da sabedoria, ou mesmo buscar auxílio junto aos sábios mestres. Foi essa a metodologia adotada pelo próprio Jesus Cristo, que, através de discursos, parábolas e diálogos – por vezes caracterizados pela discrição e recolhimento – ensinava aos seus discípulos e a todo o povo. O legado da dimensão educativa e formativa, encontrada nas Sagradas Escrituras, perpassa toda a história do cristianismo, e adquire nuances próprias nos diferentes contextos históricos e sociais. Desde o início da caminhada do povo de Deus, encontramos reis, profetas e outros escolhidos que estiveram à sua frente para conduzi-lo.

A OE só encontra significado na vida dos religiosos consagrados se houver, em primeiro lugar, amizade com Deus que se dá pela oração, pois, desde os primórdios do cristianismo, este é um tema muito caro à espiritualidade. A experiência dos padres do deserto tornou-se uma forte referência, a partir da vida silenciosa, alimentada por um espírito ascético. Eles buscavam, no silêncio, o diálogo profundo com Deus e, do deserto, nos transmitiram esse tesouro espiritual preciosíssimo.

A Igreja, definida como “instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano” (LG 1), reconhece a OE como um ministério que participa da sua missão diretiva e a recomenda, expressamente. O Concílio Vaticano II destaca sua importância na formação dos seminaristas e dos religiosos, e documentos oficiais da Igreja insistem na necessidade dessa prática. Pode-se conferir, no Código do Direito Canônico, algumas menções à OE. Para os seminaristas, o Código sugere que “cada um tenha o seu diretor espiritual, escolhido livremente” (CDC 246 § 4). Quanto aos religiosos, indica que estes devem ser respeitados pelos superiores em sua liberdade, quanto à busca da “direção de consciência” (CDC 630 § 1). O mesmo se aplica aos membros consagrados de institutos seculares, aos quais se recomenda que “procurem, livremente, a necessária direção de consciência e peçam conselhos dessa espécie, se o quiserem, também dos próprios Moderadores” (CDC 719 § 4).

Para a vida religiosa, a OE é um tesouro, uma vez que, como está dito na exortação apostólica Vita Consecrata (VC 93), os institutos e comunidades de vida consagrada devem se apresentar “como escolas de verdadeira espiritualidade evangélica”. O progresso, nessa dimensão, requer uma atenção cuidadosa para apreender aonde e a que Deus nos leva. Poderia ser essa a pergunta essencial para nossa busca e nossa necessidade de OE: onde está Deus, atuando em minha vida hoje? Onde e como está acontecendo a minha vida espiritual? O constante zelo por esse aspecto não significa dizer que a caminhada se fará, inteiramente, na tranquilidade e na paz. Pode ter um sabor amargo de partir para um lugar, no qual nunca se desejou estar; fazer algo que por opção nunca o faria; dizer “sim” a uma vocação que nunca se procurou, ou, simplesmente, obedecer em coisas simples do dia a dia.

As inúmeras atividades nas quais os religiosos estão envolvidos, hoje, parecem ter roubado do coração consagrado o espaço do silêncio onde Deus se faz presente. Os ruídos externos provocam uma dispersão que tem interferido no relacionamento com o Senhor. Aos poucos vão se tornando homens e mulheres dispersos e pouco afinados com a linguagem do Espírito que sussurra na alma: “Tenho sede!”; uma linguagem que só será perceptível ao coração silencioso e orante. A esse respeito, Nouwen, Christensen e Laird, ainda, fazem uma constatação doída:

[...] achamos muito difícil criar espaços vazios em nossas vidas e desistir de nossas ocupações e preocupações. Receamos o espaço vazio. Estamos tão preocupados em sermos úteis, eficientes e termos o controle que um momento inútil, ineficaz e incontrolável nos assusta e nos leva de volta à segurança de ter algo de valia para fazer [...]. Mais forte que o nosso medo do espaço vazio é o medo de realmente ouvir a voz de Deus! (NOUWEN; CHRISTENSEN; LAIRD, 2007, p. 42).

A resistência disfarçada em forma de dispersão é uma grande dificuldade para a escuta de Deus e a vivência espiritual, como também para o confronto com a verdade mais profunda. O ser humano é envolvido e seduzido de tantos modos que nem se dá conta a que Deus o chama. Muitas vezes, acostuma-se a ler, apressadamente, as Escrituras, celebra-se tão distraidamente os sacramentos e não se percebe a voz do Senhor que convida a beber da fonte de água viva.

Percebe-se, então, que os religiosos, inseridos no contexto do mundo, são também afetados por ele nos diversos aspectos da vida. Podem ser atingidos, entre os diversos fatores, por mudanças de lugar, missão, perdas e insucesso no apostolado, bem como situações pessoais de crise de fé, dificuldades na vida comunitária, aridez espiritual e envelhecimento. Nesse momento, são necessárias as presenças de irmãs e irmãos que os reconduzam à experiência inicial de opção por Deus.

Nesse processo, nem sempre, percebemos a ação de Deus em nós e, às vezes, não sabemos a que Ele nos conduz. Por essa razão, cumpre lembrar que todos necessitamos uns dos outros para crescer na vida. O filho precisa dos cuidados da mãe ou de outra pessoa atenta às suas necessidades; o aluno carece do professor para receber instrução e conhecimento; o trabalhador necessita do direcionamento dos colegas mais antigos na função. Enfim, em uma ou outra circunstância, todos somos necessitados da presença e da ajuda de alguém mais experiente. O mesmo acontece na vida espiritual: como discernir se o que medito, contemplo, se aquela palavra a mim dirigida me conduz, unicamente, à vontade de Deus? Como saber se o que faço agrada ao Senhor? Se não estou me enganando com minhas afeições desordenadas?

Segundo Vázquez (cf. 2006, p. 28), a experiência pessoal e imediata de Deus, que toca o solo do coração humano, afetando todo o seu ser, é condição indispensável para se fazer acompanhamento espiritual, pois nela está a matéria a ser considerada e discernida. A partir do que é vivenciado na oração, surge a necessidade de procurar um caminho para se orientar. O objetivo da OE é ajudar a crescer na vida espiritual. Nesse processo, naturalmente, surgem dificuldades, que podem ser “uma espécie de difusa descrença ou falta de coragem e ousadia para acreditar a respeito daquilo que chama de ‘experiência imediata de Deus’” (VÁZQUEZ, 2006, p. 29). A superação de tantos desafios requer compromisso, dedicação, disciplina, exercício, fidelidade, e isso não se dá sem uma firme decisão.

Todo consagrado deve buscar seu crescimento espiritual. Nenhum religioso é tão seguro de si mesmo para conduzir sozinho a própria vida, dispensando a ajuda de quem é mais experiente. Em nenhuma fase e aspecto da existência, podem se considerar tão seguros e autônomos, apesar de toda formação recebida, a ponto de que não seja necessária a presença de homens e mulheres familiarizados com Deus, que contribuam no acompanhamento espiritual e os auxiliem na busca da vontade de Deus e na fidelidade à vocação. Desde o início da vida religiosa até o seu declínio, será necessária a presença desses irmãos e irmãs orientadores que deem sustento e acompanhamento espiritual nessa trajetória.

Na caminhada espiritual, há sempre novos caminhos e novas formas de evidenciar a ação divina na alma da criatura. Os percursos variam; afinal, é o próprio Deus quem define a obra que deseja realizar na pessoa. Às vezes, essa trajetória apresenta elementos ambíguos, confusos ou, até mesmo, obscuros. Todavia, podem acontecer experiências tão agradáveis e encantadoras que limitam a percepção, impedindo que a pessoa enxergue por si mesma os pontos de melhoria. É nesse sentido que se mostra relevante a figura do orientador espiritual. Trata-se de uma presença que, ao escutar, identifica os sinais da ação de Deus sob outro olhar e, assim, ajuda o indivíduo a enxergar melhor, desafiando-lhe a retirar a trave ou as escamas que o impedem de ver com nitidez.

Na delicada arte de guiar as almas, compreende-se que, para ser um orientador espiritual, há um chamado de Deus. É ele que concede esse dom. Cabe a quem o recebe acolher essa graça e aperfeiçoar-se neste ministério, colocando-se à disposição do Senhor com humildade. Trata-se de uma missão especial porque toca a sacralidade do ser; é o próprio Deus quem age sobre este solo sagrado, sendo o orientador apenas testemunha reverente desta ação. Do orientando, espera-se abertura e humildade para se deixar conduzir por Deus e, também, para discernir e escolher sua vontade.

Precisa-se de alguém que o ajude a discernir a voz que vem de Deus e as vozes que não vêm dele, as vozes do “bom ou do mau espírito”. Precisa-se de alguém que o estimule quando a tentação de desistir bater à porta, desses homens e mulheres, orientadores espirituais, “os parteiros da alma”, “os amigos do Esposo”, que, respeitosamente, se colocam ao lado, na ajuda humilde e silenciosa para acompanhar até a entrada do “quarto nupcial” e deixar o Criador se entreter com a sua criatura.

Por isso, a OE continua sendo uma necessidade, além de ser uma contribuição imprescindível para o crescimento espiritual dos religiosos. Ninguém pode prescindir dessa ajuda. Afinal, como diz o adágio: “Ninguém é um bom juiz em causa própria”. Com a ajuda de alguém sintonizado com a linguagem do Espírito, vai-se percebendo a ação de Deus se manifestando no cotidiano da vida.

O caminho espiritual pode ser árduo, mas, também, pode ser surpreendente porque o Senhor, de maneira simples, como caminheiro de jornada, acompanha-nos na estrada de “Emaús”, como o fez com os discípulos, caminhando no ritmo deles. É o Senhor mesmo que se aproxima e se interessa, quer saber o que está acontecendo, que faz perguntas e quer ouvir a resposta, que espera, pacientemente, o tempo para o reconhecimento de que é Ele mesmo que caminha, que se faz presente e que vai aquecendo o coração, quando lhes fala das Escrituras e quando celebra a Eucaristia (cf. Lc 24,13-35).

Há necessidade de ministros competentes e dispostos para servir os seus irmãos, acompanhando-os no crescimento interior, para que sejam “corroborados em virtude, segundo o homem interior, pelo seu Espírito, e que Cristo habite pela fé nos seus corações, de sorte que, arraigados e fundados na caridade, possam compreender, com todos os santos, qual seja a largura e o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Cristo para com os homens; e conhecer também aquele amor de Cristo, que excede toda ciência, para que sejam cheios de toda plenitude dos dons de Deus” (Ef 3,16-19).

5. Do início de um itinerário de crescimento espiritual


Todos nós sentimos no coração a sede da transcendência, o desejo profundo de Deus. De muitas formas ouvimos a voz do Amado que nos convida a beber da fonte da água viva e fazermos, muitas vezes, a experiência do encontro pessoal com ele. Conhecemos o seu valor e nele está contida a “dracma” (cf. Lc 15,8-10) que um dia encontramos com alegria e pela qual deixamos tudo para adquiri-la. Existe, na alma, uma saudade do paraíso que se foi perdendo e que precisa ser resgatado. Todos queremos uma vida religiosa vivida plenamente, fundamentada em Jesus e alimentada pela experiência de Deus. A esse respeito, a Igreja, no documento Vita Consecrata, lembra que “é precisamente a qualidade espiritual da vida consagrada que pode interpelar as pessoas de nosso tempo, também elas sequiosas de valores infinitos, transformando-se num testemunho fascinante! ” (VC 93). Assim, a vida espiritual torna-se vida, a qual deve ser, continuamente, alimentada e carinhosamente cuidada.

Ao refletir sobre o tema, Rech aponta a oração diária como meio para reaprender a buscar a espiritualidade e, dessa maneira, alimentar a consagração, ter o sustento na missão e recriar as próprias relações. Ela chama a atenção para a importância desse aspecto ao afirmar que

A vida religiosa sem experiência de Deus é vazia. E sem espiritualidade, a vida consagrada é sem sentido e sofre de anemia profunda, fica fraca [...]. A espiritualidade é o abraço, o fio de ouro que “costura” todas as dimensões de nossa vida; é o sentido mais profundo da vida, da fé, do amor, da entrega. (RECH, 2015, p. 84)

A fidelidade ao encontro pessoal com Deus é indispensável para o cultivo de um relacionamento com ele. Nesse sentido, Rech destaca que não são os manuais de livros de espiritualidade que levam a reaprender o caminho, mas é dentro de nós mesmos que podemos descobrir como fazê-lo (cf. RECH, 2015, p. 83). Cuidar da vida interior é a forma mais eficaz de manter acesa a chama do primeiro amor e alimentar o nosso encanto por Jesus e seu projeto.

Na vida religiosa, para afirmar que Jesus está no centro de sua escolha, faz-se necessário que o consagrado percorra um longo caminho, investindo no crescimento pessoal e contínuo de sua formação em diversas áreas. São muitas as possibilidades de ajuda para alcançar esse objetivo. Quando se trata da relação com Deus e da busca de discernimento para fazer sua vontade, a OE quer ser uma seta que, seguramente, nos apontará o rumo para a estrada certa. Ajudará o consagrado a se encontrar consigo mesmo, com os outros e com Deus, para ter uma vida humana e de qualidade.

A OE se dá num ambiente de fé, na escuta do Espírito de Deus e na relação entre duas pessoas. Santa Teresa d’Ávila, renomada mestra de espiritualidade, ensina-nos que

quando uma alma decide dedicar-se à oração e começa a se exercitar nela, com a ajuda de Deus, temos de procurar, como bons jardineiros, que essas plantas cresçam, tendo o cuidado de regá-las para que não se percam e venham a dar flores cujo perfume agradável delicie esse nosso Senhor, para que venha a se deleitar muitas vezes em nosso jardim e a gozar entre essas virtudes (apud SCIADINI, 2006, p. 16).

Então, para que a OE? O desejo de crescer é um anseio presente no coração de toda pessoa; em toda ela existe uma busca de progredir e de ser melhor. Cada um de nós sabe, por experiência, que temos a necessidade de procurar alguém para nos ajudar a buscar um melhor discernimento e, assim, tomarmos decisões mais acertadas.

Por tantas situações em que a vida nos coloca, por suas complexidades, se faz necessário buscar luzes que iluminem este itinerário. A Palavra de Deus foi sempre um farol que serve como orientação diante dessa complexidade (cf. Sl 119,105). Nela está a fundamentação para continuarmos buscando a OE. Na Sagrada Escritura, há diversas indicações de como essa prática aplicava-se a várias categorias de pessoas e situações. No AT, encontra-se esta recomendação expressa: “Aconselha-te com pessoa sensata e não desprezes os conselhos úteis” (Tb 4,18). O livro do Eclesiástico sugere o uso do conselho e da ajuda de um homem piedoso para observar mais fielmente os mandamentos. (cf. Eclo 37,12-15). No NT, Cristo recomenda a Saulo que procure Ananias para saber o que deve fazer (cf. At 9,6-19).

Paulo recomenda à comunidade de Corinto o “discernimento de espíritos” e orienta, diante de situações de divergência e conflitos, que os fiéis examinem a própria consciência (cf. 1Cor 11,28-32). Esses são alguns exemplos que autenticam a importância da OE.

A orientação espiritual quer ser um auxílio para este crescimento e para discernir a vontade de Deus. Se essa prática foi sendo deixada de lado, devemos retomá-la, urgentemente; de modo especial, na vida religiosa, na qual se pretende ter uma vida espiritual saudável. Se, como declaram Barry e Connolly, “a direção espiritual sempre teve por meta final intensificar a união com Deus e, portanto, sempre esteve ligada ao relacionamento individual com o Senhor” (BARRY; CONNOLLY, 1987, p. 22), então, naturalmente, é imprescindível cuidar da vida de oração, procurando ser fiel ao encontro pessoal diário com Deus, além da busca pela ajuda necessária para dar bons frutos. 

Conclusão


Diante dos desafios do nosso tempo e, para encorajar a Vida Religiosa Consagrada, no seu exercício profético de seguimento a Cristo, percebemos o quanto é importante para os consagrados e para o cristão a prática da OE.

Constatamos que é necessária uma formação para aqueles que se deixam interpelar pelo Espírito Santo e se dignam acompanhar outros na OE. Para os querem receber a OE, é necessária uma docilidade ao se deixarem conduzir pelo orientador espiritual, que, se abrindo ao Espírito Santo, Pedagogo Divino, busca o melhor caminho para discernir na vida do orientando a Santa Vontade de Deus. Deixar o orientando livre para viver sua vocação de maneira serena em busca da felicidade deve ser o motor de toda boa OE.

Através do nosso estudo, percebemos que faltam pessoas habilitadas e que tenham o tempo necessário para se dedicar à OE e possuam o discernimento que este serviço espiritual exige. Porém, há um despertar para essa prática em nossos tempos e é salutar perceber que as novas gerações sentem esse apelo de voltar e/ou procurar a OE para melhor viver seu chamado para seguir Jesus Cristo. Constatamos, também, uma sensibilidade, por parte dos ambientes de estudo teológico, a aprofundar esses temas, com novos estudos científicos.

Sabemos que, pela limitação da nossa pesquisa, não esgotamos o argumento, mas o deixamos como incentivo para novos estudos com a perspectiva positiva de que a OE é uma matéria de estudo teológico de grande valor para o momento hodierno, pois ajudará as gerações já experimentadas no seguimento de Jesus a reavivar a chama de suas vocações e as novas gerações a se deixarem guiar pelas moções do Espírito Santo que nos encoraja a perseverar na Vida Religiosa Consagrada.

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* publicado primeiro em: Revista Convergência, n. 518, janeiro/fevereiro/2019, ano LIV, pp. 95ss.

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