"Toda vida é pão": uma abordagem eucarística do discernimento e acompanhamento dos jovens [1]

 


ITAICÍ - Revista de Espiritualidade Inaciana


Por Francis Silvestrini Adão, SJ *

Resumo

Neste artigo, com o auxílio de uma reflexão "teogastronōmica", o autor propõe uma nova abordagem do discernimento -- na perspectiva eucarística -- que seria favorável à articulação desejada pela exortação apostólica Christus Vivit entre fé, discernimento (cotidiano e vocacional) e acompanhamento fraterno. Ao assumir como "boa nova" o desejo de singularidade presente no mundo contemporâneo, propõe-se um caminho de realização pessoal a partir do gesto eucarístico de Jesus, durante a última ceia: tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu-o aos seus discípulos... Os mistagogos cristãos, graças a uma assimilação espiritual e prática das implicações desses quatro verbos que condensam o cerne da fé, seriam capazes de ajudar os mais jovens -- e também os não tão jovens -- no discernimento dos caminhos de Deus em suas vidas. Todos poderão, assim, assumir pessoalmente a aventura dramática e saborosa de uma existência livre, nos passos de Jesus Cristo.

Quando falamos do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo, do discernimento dos traços de Deus na vida de cada um e do acompanhamento de outras pessoas em seus próprios caminhos de vida, estamos de fato, no campo da "arte". Portanto, como no caso de qualquer arte, isso requer um esforço contínuo de aprendizagem por parte de cada um, bem como a ajuda de irmãos e irmãs dispostos a compartilhar os frutos de seus próprios fracassos e experiências bem-sucedidas.

Fazendo eco aos desejos e desafios apresentados pela exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit, nossa reflexão pretende partilhar os frutos de uma intuição teológica e de uma prática pastoral com jovens. A adesão de jovens e adultos a esta nova proposta nós dá esperança de que esta experiência possa inspirar a cada um de vocês, leitores e leitoras, na construção de seu próprio caminho de serviço aos jovens.

Em primeiro lugar, à luz de uma "experiência parabólica" ligada à cozinha, retomaremos algumas orientações da exortação apostólica, situando-as num cuidado pastoral mais existencial: isso nos encorajará a procurar uma relação com a fé cristã mais enraizada na vida cotidiana das pessoas. A seguir, apresentaremos os principais contornos de nossa abordagem que articula anúncio-discernimento-acompanhamento, numa perspectiva que chamamos "discernimento eucarístico" -- ela própria baseada numa reflexão de tipo "teogastronōmico". Enfim, sensíveis ao serviço eclesial de acompanhamento fraterno, oferecendo algumas linhas de ação concretas, com vistas a ajudar os jovens a caminhar rumo à realização de suas vidas como um pão sempre único, oferecido como alimento para a alegria do mundo e a glória de Deus.

 

1. Um acordo sobre os fundamentos: o desafio de ser único e o imperativo do discernimento

Vivemos numa época em que os fenômenos da "emergência do sujeito" e da consciência da "pluralidade irredutível" de pessoas e grupos humanos -- os eixos da modernidade e da chamada pós-modernidade ocidental -- não estão mais reservados a uma "elite", mas foram recebidos pelas "multidões".  No entanto, essa recepção da consciência e do desejo de viver de forma singular está entre as principais causas da experiência contemporânea de fragmentação -- pessoal e social -- do ser humano. Com efeito, é sempre difícil, por um lado, integrar as diferentes dimensões da nossa humanidade numa vida unificada e, por outro lado, tornar-se um, de forma justa, com os grupos de que fazemos parte -- nossa família, nossa igreja, nossa nação...

Para falar de outra maneira sobre essa mesma realidade -- ao modo de uma parábola --, compartilho com vocês um encontro esclarecedor com um chef de cozinha. [2] Entre os cozinheiros e cozinheiras que conheci durante minha pesquisa de doutorado, tive a oportunidade de conversar com o chef francês Laurent Suaudeau, uma espécie de "missionário" da Nova Cozinha no Brasil. Morando no Brasil desde o início da década de 1980, o chef Suaudeau é uma autoridade entre os chefs brasileiros. Tornou-se formador de um grande número de jovens cozinheiros, graças à sua Escola de Arte Culinária, localizada em São Paulo.

Na nossa conversa, o chef Suaudeau partilhou comigo um ponto de admiração e preocupação em relação aos jovens que chegavam à sua escola: eles tinham uma criatividade enorme e um grande desejo de inovação, além de um projeto profissional aparentemente muito claro em sua cabeça. Porém, por falta de paciência, muitas vezes não dominavam os conhecimentos básicos de culinária -- principalmente as habilidades manuais -- e reagiam mal ao caminho disciplinado para chegar até aí, proposto por seu professor. Em suma, eles queriam ser chef de cozinha sem assumir plenamente a exigente tarefa de se tornarem bons cozinheiros. Essa verdade profissional faz-nos pensar numa outra, de tipo mais existencial: no nosso tempo, graças às mudanças de mentalidade e às revoluções culturais e tecnológicas vividas ao longo do século XX, existe o risco real de se preocupar ser uma pessoa única e singular, sem compreender e assumir a tarefa e os riscos de aprender a ser pessoa.

Com essa pequena história em mente, podemos nos apropriar de algumas reflexões da exortação apostólica aqui examinada. A Christus Vivit encoraja os jovens e seus acompanhantes a procurar "um caminho de liberdade que faz aflorar a realidade única de cada pessoa, aquela realidade que é tão sua, tão pessoal que só Deus conhece" (CV 295). Ao mesmo tempo, a encíclica alerta para o perigo do zapping. "É possível navegar simultaneamente em dois ou três visores e interagir ao mesmo tempo em diferentes cenários virtuais. Sem a sapiência do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetes à mercê das tendências da ocasião" (CV 279). Para ajudar a todos a caminhar para uma vida plena e vivida em profundidade, o Papa Francisco destaca dois serviços fundamentais: uma formação cristã centrada no essencial da fé e um caminho de discernimento acompanhado.

Quanto à formação, o texto é muito claro em sua advertência: "Acalmemos a ânsia de transmitir uma grande quantidade de conteúdos doutrinais e procuremos, antes de mais nada, suscitar e enraizar as grandes experiências que sustentam a vida cristã" (CV 212). Essas "grandes experiências" giram em torno de dois eixos complementares: "um é o aprofundamento do querigma, a experiência fundante do encontro dom Deus através de Cristo morto e ressuscitado, o outro é o crescimento no amor fraterno, na vida comunitária, no serviço" (CV 213).

Quanto ao discernimento, ele parece estar relacionado com duas tarefas da vida cristã: por um lado, cada um deve aprender a discernir a própria vocação, o seu lugar no mundo e no ministério de Deus (cf. CV 283-286); por outro, o discernimento, de forma mais ampla, é "um instrumento de compromisso forte para seguir melhor o Senhor" (CV 295). Essa aptidão sapiencial torna-se, assim, necessária -- e, para a Igreja, um imperativo pastoral -- à medida que nos damos conta do ministério e do valor incomparável da vida única de cada um. Nessa perspectiva, discernir não corresponde apenas a escolher isto ao invés daquilo, mas "trata-se de entrever o mistério daquele projeto único e irrepetível, que Deus tem para cada um", isto é, "o sentido da minha vida diante do Pai que me conhece e ama, aquele sentido verdadeiro para o qual posso orientar a minha existência e que ninguém conhece melhor do que Ele (CV 280).

Diante dessa tarefa sempre pessoal, todos precisamos de bons companheiros de peregrinação: daí a importância do acompanhamento fraterno. No entanto, os jovens participantes do Sínodo manifestaram claramente o seu desejo: acima de tudo, não querem um acompanhante "colocado num pedestal", nem alguém que não respeite a sua liberdade de encontrar seus próprios caminhos (cf. CV 246). Numa fórmula cada ao Para Francisco, podemos afirmar que um acompanhante é convidado a formar a consciência e não a substituí-la. A encíclica, fazendo próprias as palavras dos jovens, descreve as qualidade de um bom acompanhante:

Ser cristão fiel comprometido na Igreja e no mundo; uma tensão contínua para a santidade; não julgar, mas cuidar; escutar ativamente as necessidades dos jovens; responder com gentileza; conhecer-se; saber reconhecer os seus limites; conhecer as alegrias e as tribulações da vida espiritual (CV 246).

Esses poucos números da Christus Vivit nos confrontam com os desafios existenciais da busca por articular, de forma justa, a singularidade dos jovens e as relações de ajuda mútua. A fim de confirmar a reflexão apresentada pela encíclica e lançar uma nova luz sobre o nosso tema, vejamos as implicações espirituais do nosso título -- também parabólico -- "toda vida é pão".


2. Para saciar nossa fome de plenitude: um discernimento eucarístico da vida

Nós, cristãos, não devemos ter medo desse fenômeno de singularização -- nem da fragmentação que vivemos no caminho até chegar â nossa singularidade. O teólogo jesuíta Christoph Theobald ajuda-nos a ver nesse fenômeno as consequências do amadurecimento da confissão de fé cristológica e trinitária no Ocidente [3]: trata-se de uma "secularização" da compreensão de Jesus Cristo como Filho único do Pai e do Mistério de Deus como "Pessoas únicas em relação". O desafio fundamental de toda vida humana está, portanto, ligado a este processo em que cada um é chamado a tornar-se pessoa, construindo sua singularidade em relação com os outros, igualmente únicos.

Para os discípulos de Jesus Cristo, o horizonte de uma comunidade espiritual e encarnada de pessoas "únicas em relação" aparece, aos poucos, como um dom gratuito de Deus três vezes Santo à sua criação e como uma tarefa sempre entregue às mãos humanas: homens e mulheres chamados a compreender-se mais profundamente como "mistério de autotransformação" e a ter acesso a uma nova qualidade de vida mais autêntica e mais servidora dos outros. Como, então, podemos ajudar os jovens de hoje a compreender e a viver a própria vida como "mistério de autotransformação", no seguimento de Jesus? Uma abordagem sapiencial e parabólica da fé eucarística revela-se um caminho estimulante e fecundo. Vejamos um exemplo inspirador.

Numa meditação sobre a oração do Pai Nosso, o Cardeal José Tolentino Mendonça, exegeta e poeta português, propõe uma abordagem existencial do pedido "o pão nosso de cada dia nos dai hoje", definindo a vida humana por um jogo de semelhanças: "Todas as vidas cabem na imagem quotidiana, quase trivial, do pão que se parte e se reparte. Porque as vidas são coisas semeadas, crescidas, maturadas, ceifadas, trituradas, amassadas: são como pão" [4]. Essa não é apenas uma declaração bela e poética, mas revela e assume a dimensão dramática da vida: "Por boas e por más razões ninguém permanece inteiro. Somo uma massa que se quebra, um miolo que se esfarela, uma espessura que diminui".[5] O exegeta português coloca-nos questões fundamentais: "Todos nos gastamos, certo. Mas em que comércios? Todos sentimos que a vida se parte. Mas como transformar esse fato trágico em uma forma de afirmação fecunda e plena da própria vida?" [6]. As respostas que dermos a essas perguntas fundamentais decidirão o "estilo" de pão que nos tornamos. De fato:

Todas as coisas são pão, mas nem todas são Eucaristia, isto é, oferta radical de si, entrega, doação, serviço. Todas as vidas chegam ao fim, mas nem todas vão até o fim do parto desta vitalidade (humana e divina) que trazem inscritas [...] Alimentando-nos uns dos outros. Somo uns para os outros, na escuta e na palavra, no silêncio e no riso, no dom e no afeto, um alimento necessário, pois é vida (e de vida partilhada) que as nossas vidas se alimentam. [7]

A partir da identificação simbólica entre pão e vida -- inspirada no gesto sem precedentes de Jesus na última Ceia --, o Cardeal Tolentino apresenta o cerne da fé cristã -- o mistério pascal, anunciado e celebrado na Eucaristia -- como uma poderosa luz que ilumina o modo como cada um assume toda a sua vida. Com seu talento poético, ele tenta nos ajudar a reconhecer que "as nossas vidas são um receptáculo do dom. Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a própria existência".[8] Entrar livremente na dinâmica eucarística pressupõe tornar-nos cada vez mais conscientes de que "a nossa história começou antes de nós e persistirá depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, gestos, boas vontades, causas, afagos, afetos". [9] O que nos torna "únicos em relação" é, na verdade, um movimento propriamente pascal, uma passagem contínua da vida em nós: recebemo-nos dos outros; entregamo-nos aos outros.

Á luz desta leitura existencial da última Ceia de Jesus, como podemos ajudar os jovens de hoje a reconhecer que outros seres e pessoas se fizeram alimento para eles e a escolher a sua própria maneira de se tornarem alimento para os outros? Como acompanhá-los no grande desafio -- trinitário e pascal -- da existência de cada um: receber, transformar e transmitir sua vida única? Com o propósito de dar uma resposta acessível e aprofundar a estas perguntas, propomos um processo de discernimento iluminado pelo gesto eucarístico de Jesus.

Como sabemos, em sua última refeição pascal, Jesus ofereceu sua vida e morte únicas em favor de seus discípulos e da multidão. Mas ele também entregou -- ao mesmo tempo -- o caminho para viver à sua maneira até o fim:  tomar, dar graças, partir e dar. Descentrando-se e oferecendo-se como alimento essencial e bebida festiva para os seus, a obediência filial de Jesus realizou a vontade de seu Pai: a efusão do Espírito do Pai e do Filho sobre o mundo criado, um dom livre que torna possível o surgimento de uma multidão de homens e mulheres únicos e reconciliados. A abertura a este dom de excelência -- uma convivência fraterna e pacífica no mundo -- exige, porém, a adesão dos amigos e amigas de Jesus, que deveriam fazer isso em sua memória. Nesse "isso", Jesus confia aos seus irmãos a expressão gestual do seu Espírito: o seu modo de viver a filiação, assim como a fecundidade que recebeu do Pai.

Com efeito, os dois primeiros verbos do gesto eucarístico introduzem-nos na filiação ao modo de Jesus. A recepção de si -- ato divino próprio do Unigênito -- é, também, a condição mais fundamental de nossa existência criada. No entanto, no desenvolvimento de uma vida humana, essa qualidade natural do mundo pode se tornar um ato livre: tomar significa aderir ativamente a essa condição de dependência de outrem. A liturgia eucarística explica o modo como Jesus assume essa condição filial na sua história: ele toma abençoando, isto é, dizendo o bem do fruto da aliança entre Deus, a terra e o trabalho humano. A benção de ação de graças é, portanto, o louvor de gratidão de quem sabe que está sempre necessitado do dom generoso do outro.

Essa compreensão da ação de graças pascal de Jesus também nos leva a uma compreensão renovada dos dois últimos verbos do seu gesto eucarístico: eles nos permitem ter acesso à fecundidade ao modo do Pai, recebida por Jesus e oferecida como presente para a humanidade. A entrega de si -- ato divino próprio do Pai -- é, também, a condição para a continuidade de toda existência criada na história. Como no ato de receber, cada pessoa humana pode assumir livremente este festo: o dar supõe uma adesão ativa à entrega de si em favor de outrem. A liturgia eucarística também explicita o modo como Jesus se associa ao ato fecundo de entrega, fonte de sua vida e da existência do mundo: ele dá, partindo(se). Essa autofração vivificante é a condição para a Paz entre o projeto salvífico de Deus e o mundo rebelado: assumindo sobre si a fragmentação mortífera -- a recusa pecaminosa da finitude da criação --, Jesus realiza sua unidade original e não-fusional com seu Pai.

A recepção agradecida e a entrega kenótica [10] -- essas duas portas de acesso à santidade do Espírito do Filho e do Pai -- passam a ser os critérios de verificação da qualidade da nossa vida "única em relação", seguindo o caminho inaugurado por Jesus Cristo. [11] Assim, um caminho de discernimento deve ser capaz de ajudar cada jovem a fazer um "pacto de amor" com sua pŕopria realidade, a fim de dar de graça -- fecundidade -- o que recebeu de graça -- filiação. Inspirados por esse grande horizonte divino, graciosamente acessível à nossa humanidade, podemos agora perguntar-nos: que ferramentas práticas nós temos para acompanhar os jovens na "conversão eucarística" da sua vida?


3. Apoiar os jovens na "arte" do discernimento: três instrumentos pastorais

O horizonte do discernimento que queremos oferecer aos nossos jovens está bem fundado numa base sólida: o mistério pascal de Jesus Cristo, núcleo do anúncio da Boa Nova cristã. No entanto, embora possamos estar profundamente alegres com este dom que nos precede, ainda há muito por fazer. Com efeito, o gesto eucarístico de Jesus é hospitaleiro: ele permanece aberto a cada pessoa que deseja ir até o fim na recepção e entrega de sua vida única. Como então podemos ajudar os jovens a verificar a qualidade real de sua relação com o que a vida lhes oferece e com sua maneira pessoal de se doar aos outros?

Um primeiro instrumento pastoral é o exercício autobiográfico: trata-se de uma aposta na capacidade que cada jovem tem de contar sua própria história, dando-lhe sentido. No entanto, para introduzir, suavemente, os jovens numa perspectiva eucarística de modo lúdico, podemos levá-los a escrever uma "autobiografia gastronômica": sua relação com a comida ao longo de suas vidas (como comensais e/ou cozinheiros/as). Este exercício de memória, graças à sua perspectiva lúdica e afetiva, poderá lançar luz -- de uma forma menos dramática -- sobre os gostos, resistências, mudanças, carências, relacionamentos, tentativas e fracassos de cada um. Com efeito, num sentido imediato, a gastronomia corresponde ao prazer da mesa: pertence ao domínio da alegria e da gratuidade. Num segundo nível, já reflexivo, corresponde ao saber sobre a construção do prazer no ato de cozinhar e comer: trata-se de um saber culinário ordenado -- etapas, história, sabores, valores. Mas esses dois níveis podem nos levar a um terceiro -- aquele que nos interessa aqui --, revelado pelos fragmentos dessa palavra: uma abordagem gastro-nômica (do grego gaster = entranhas + nómos = norma, lei) seria capaz de manifestar uma normatividade específica às nossas entranhas, trazendo à tona testemunhas discretas daquilo que está inscrito em nossa carne e que muitas vezes escapa à nossa palavra. Vejamos outro exemplo disso na reflexão do Cardeal Tolentino:

A cozinha é metáfora da própria existência, pois distingue-nos uma certa capacidade de viver na transformação, numa mobilidade que não é só geográfica, mas total. Em cada uma das nossas cozinhas dão-se tantas transformações que elas se tornam quase invisíveis. A cozinha é o lugar da instabilidade, da procura, da incerteza, das misturas inesperadas, das soluções criativas mais imprevistas. Por isso está tantas vezes desarrumada, porque vive nessa latência de recomposição. Na cozinha torna-se claro que a transformação que damos às coisas reflete aquela que acontece no interior de nós. [12]

A segunda ferramenta pastoral pode ser aplicada após a redação da autobiografia gastronômica. Trata-se de um exame da própria conversão à filiação e à fecundidade, a partir dos quatro verbos do gesto eucarístico de Jesus. Os jovens são convidados a reler sua escrita autobiográfica, num processo de tomada de consciência e reconciliação, seguindo quatro passos: 1) Tomar: eles são capazes de se aproximar, com amor, de toda a sua realidade -- suas alegrias e suas tristezas, seus conhos e suas angústias...? 2) Dar graças: estão pontos para reconhecer e nomear, com gratidão, o que lhes dá vida e de onde tudo isso vem? 3) Partir: já estão maduros para integrar, de maneira lúcida e pacífica, seus próprios dramas e rupturas dolorosas? 4) Dar: para onde sua generosidade e seus sonhos parecem orientá-los? Por quem ou pelo que estão dispostos a comprometer a vida?

Além disso, a atenção aos gestos eucarísticos pode mudar de acordo com a finalidade do discernimento de cada um. Aqui estão três possibilidades mais gerais, que devem ser identificadas pelos acompanhantes: 1) Se a questão de um jovem está centrada num ato de recepção, o critério de verificação será o Filho -- receber tudo com louvor e gratidão. 2) Se a questão de um jovem está orientada a um ato de doação, o critério de verificação será o Pai -- dar tudo e ser capaz de abrir espaços para os outros. 3) Se a questão de um jovem diz respeito a um ato de transformação/conversão, o critério de verificação será o Espírito -- abençoar e renunciar, núcleos gestuais da santidade filial e paterna.

A terceira e última ferramenta pastoral vem da tradição espiritual inaciana. Santo Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais (178-183), dá algumas pistas para quem, estando em "tempo tranquilo" (isto é, sem clareza espiritual e sem agitação interior), deseja tomar uma decisão em comunhão com Deus. Aqui está uma releitura das etapas que ele sugere:

  1. Defina previamente a "matéria" de discernimento, com base em duas alternativas claramente definidas.
  2. Medite sobre a diferença entre o "fim" para o qual somos criados e os "meios" para chegar a esse fim. O fim corresponde sempre a essa Vida trinitária e pascal de que falamos na segunda parte deste artigo. O discernimento relaciona-se, precisamente, com os meios para melhor corresponder a essa Vida na nossa existência concreta.
  3. Peça ao Senhor a graça da liberdade interior diante das duas alternativas, bem como o desejo de realizar o maior louvor e glória de Deus. Não passe às etapas seguintes, até que se sinta internamente livre diante das duas alternativas.
  4. Aplique a inteligência à primeira alternativa: procure as vantagens e desvantagens de seguir esse caminho de decisão. Registre tudo em duas colunas. Nesta e na próxima etapa, é importante dar a si mesmo os meios para encontrar informações importantes sobre cada uma das alternativas.
  5. Aplique a inteligência à segunda alternativa: procure as vantagens e desvantagens de seguir esse caminho de decisão. Registre tudo em duas colunas. Estas duas últimas etapas são fundamentais para evitar um "curto-circuito" bastante comum nos processos de tomada de decisão: comparar as vantagens de uma alternativa com as desvantagens da outra... Isso, obviamente, não seria muito justo!
  6. Após essa ponderação, observe para qual das alternativas sua inteligência se inclina mais. Tome a decisão de acordo com a maior inclinação racional (e não de acordo com a inclinação emocional, que pode começar a sofrer por causa da necessária renúncia a uma das alternativas...).
  7. Oferecer a decisão a Deus, em oração; e peça-lhe que a receba e confirme.
  8. Observe os movimentos espirituais: se o Senhor nos der uma consolação duradoura (paz, alegria, convicção interior...), podemos considerar o discernimento encerrado. Se estivermos agitados e desolados, precisamos nos interrogar sobre o processo: seguimos todos os passos sugeridos? Muitas vezes, o problema está na terceira etapa, ou seja, em uma possível falta de liberdade interior. Nesse caso, devemos reiniciar o exercício.

Eis, pois, três instrumentos pastorais capazes de oferecer aos mais jovens, de maneira justa e fiel à fé cristã, um acompanhamento fraterno no seu caminho pessoal de discernimento e de decisão.

 

Conclusão: um banquete preparado por muitos chefs

A reflexão que acabamos de apresentar -- uma tentativa de articulação entre o anúncio existencial do ministério pascal de Jesus Cristo e a ajuda para discernir o amadurecimento da Vida de Deus em cada um -- é uma abordagem de tipo mistagógico. Os mistagogos cristãos, graças a um olhar pascal sobre a "gastronomia" e uma assimilação espiritual das implicações dos quatro verbos que condensam o cerne da fé, seriam capazes de ajudar os mais jovens -- e também os menos jovens -- no discernimento dos caminhos de Deus em suas vidas. Todos poderão livremente assumir a aventura do seguimento de Jesus Cristo, para dar o seu toque pessoal à diversidade de sabores do Banquete Eterno, que já começamos a saborear na esperança.

 Ao mesmo tempo, quem deseja acompanhar os jovens no caminho do discernimento deve ter em mente dois princípios, apresentados na Christus Vivit. No que diz respeito aos jovens acompanhados, ninguém pode "entender plenamente nem prever de fora como se desenvolverá [a emergência da vocação única de cada um]" (CV 295). Em relação a si mesmo, eis a regra de ouro: "para acompanhar os outros neste caminho, primeiro precisa de ter o hábito de o percorreres tu próprio" (CV 298). Sigamos, pois, sem medo, rumo às transformações sempre surpreendetes das nossas próprias coinhas eucarísticas, onde o grande Chef sempre nos faz companhia.


* O autor é jesuíta padre, professor de Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e membro da equipe de formação no juniorado e filosofado em Belo Horizonte. Colabora com o programa de pastoral de juventude MAGIS Brasil.

[1] Este artigo foi originalmente publicado em francês, na revista internacional de catequese e pastoral Lumen Vitae (que, gentilmente, autorizou-nos a publicar esta tradução). Cf. Lumen Vitae, vol. LXXV, 2020.3, pp. 279-290. Publicado na ITAICÍ - Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 121. São Paulo: Loyola, 2020, pp. 11-21 (que gentilmente, autorizou-nos a publicar neste blog).

[2] Minha pesquisa de doutorado, concluída em 2018, propôs um diálogo entre a fé eucarística e a reflexão gastronômica brasileira, tendo como título A vida como alimento. Por um discernimento eucarístico do humano fragmentado.

[3] Cf. THEOBALD, Ch. "Le Fils inique et ses frères". In: Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tomo II. Paris: Cerf, 2007, p. 823.

 [4] TOLENTINO MENDONÇA, J. Pai-nosso que estais na Terra. O Pai-nosso aberto a crentes e a não-crentes. Prior Velho: Paulinas, 2011, p. 106. 

[5] Idem, p. 107.

[6] Idem, p. 107.

[7] Idem, p. 107-108.

[8] TOLENTINO MENDONÇA, J. A mística do instante. O tempo e a promessa. Prior Velho: Paulinas, 2014, p. 71.

[9] Idem, p. 71. Esta consciência é expressa pela poeta Adília Lopes: "Sou uma obra dos outros". Idem, p. 71.

[10] Em referência à kénosis -- abaixamento ou esvaziamento --, expressão utilizada por São Paulo em Filipenses 2,6-7.

[11] Isto marca a distinção entre uma "unicidade de singularidade" -- característica de cada ser único -- e uma "unicidade de excelência" -- a fecundidade vivida por Jesus Cristo e proposta a quem deseja seguir seu caminho de vida. Cf. THEOBALD, CH. "Le Fils unique et ses frères". In:  Le christianisme comme style. Une manière de faire de la théologie en postmodernité. Tome II. Paris: Cerf, 2007, p. 825. Christoph Theobald toma emprestadas essas categorias da reflexão de Stanilas Breton. Cf. BRETON, S. Unicité et monotéisme. Paris: Cerf, 1981.

[12] TOLENTINO MENDONÇA, J. A leitura infinita. Bíblia e interpretação. Lisboa: Assírio & Alvin, 2008, p. 159.

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